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Como o cristão deve relacionar-se com a cultura?

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O cristão, hoje mais do que nunca, há de estar preparado para vencer a guerra cultural. É na cultura e na educação que as mais importantes batalhas são travadas. É bom, portanto, que nos perguntemos: será que temos um entendimento de como nós, discípulos de Cristo, devemo-nos relacionar com a cultura? Ou ainda, antes disso: será que sabemos o que é cultura? Vamos começar por analisar o termo. 

O termo “cultura” se origina do latim “colere”, que pode ser traduzido por cultivar. De fato, até hoje ainda o utilizamos dessa forma original, quando, por exemplo, nos referimos à cultura da cana-de-açúcar ou à cultura do café, importantes no Brasil desde o Século XVI e XVIII, respectivamente. Aliás, também utilizamos este sentido de cultura ainda hoje, quando fazemos uso dos termos agricultura ou monocultura, para citar alguns exemplos.

O sentido original se ampliaria com o tempo. Aliás, desde os gregos, havia o entendimento de que o processo de cultura, como a da lavoura, era sempre fruto de uma intervenção humana por meio de um conhecimento adquirido, conhecimento este que em grego era “máthēma”, termo que, inclusive, está na origem da palavra “matemática”. Por isso, o sentido de cuidar de algo, por meio de aplicação do conhecimento, para que o objeto cuidado floresça e dê frutos gradativamente passou a ser utilizado de maneira metafórica, gerando uma ampliação lenta da semântica original de cultura. 

No Século XVIII, mais especificamente no ano de 1793, foi publicado na Alemanha o Dicionário Adlung, em que constava o verbete “cultura” ou, para ser mais exato, “kultur”, no original alemão. O mais interessante nesse dicionário foi que ele descreveu cultura também como algo semelhante ao que em língua francesa já se chamava de “civilisation”, ou  seja, civilização. Veja que se tinha já aí um embrião do ocorreria apenas no século seguinte, o Século XIX, em que cultura seria mais claramente entendida como um processo de refinamento da mente, um processo inclusive ligado à educação.

No Século XIX, começa-se também alguma produção relevante na teologia cristã sobre cultura. Certamente, parte significativa da justificação da demora se deveu ao fato das Escrituras não apresentarem a palavra “cultura”. Quero dizer que, se analisarmos mais pormenorizadamente o texto sagrado, veremos que não encontramos nos sessenta e seis livros da Bíblia nenhuma palavra, seja em aramaico, hebraico ou grego, que tenha sido diretamente traduzida por cultura. 

Aliás, apenas em 2 Esdras, que é um livro que não está na Bíblia, não sendo, pois, considerado inspirado, que “cultura” aparece. Trata-se do capítulo 8, verso 6, que diz assim: “Ó Senhor, se não toleras o teu servo, que possamos orar diante de ti, e nos dês semente ao nosso coração e cultura ao nosso entendimento, para que dela venham frutos; como viverá o corrupto que ocupa o lugar de um homem?” É curioso que apenas em um livro apócrifo e, nesse caso, não apenas considerado assim pelos evangélicos, mas também por católicos romanos e grande parte dos ortodoxos, que podemos ler um termo traduzido por “cultura”.

Voltando à análise da Bíblia Sagrada, vemos que, embora lá não haja literalmente a palavra “cultura”, há sim passagens em vários dos livros inspirados em que o conceito de cultura como o modo de ser, de agir, os costumes de um povo, está presente. Em outras palavras, podemos identificar tanto em hebraico quanto em grego palavras que estão em contextos em que poderiam ser entendidos por cultura, mesmo que, reitero, não fosse o caso de traduzi-las assim. A título de exemplo, citemos quatro ocorrências, duas em hebraico e duas em grego. Vamos a elas. 

Em Rute 4.7 (ARA), dizem as Escrituras: “Este era, outrora, o costume em Israel, quanto a resgates e permutas: o que queria confirmar qualquer negócio tirava o calçado e o dava ao seu parceiro; assim se confirmava negócio em Israel.” Aqui, o termo “costume” é uma tradução de פנימּ – paniym -, do qual se pode dizer que se referia à cultura em Israel. 

Em Jeremias 32:11(ARA), lemos: “Tomei a escritura da compra, tanto a selada, segundo mandam a lei e os estatutos, como a cópia aberta”. Nessa passagem, “estatutos” é mesmo a melhor tradução de חק – choq -, o que não quer dizer que não traga uma correlação possível com o conceito de cultura enquanto modo de proceder de uma sociedade. 

No último verso do Evangelho de João 21.15 (ARA), lemos o seguinte: “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos.” O termo “mundo”, aqui, é traduzido do grego κόσμος – Kosmos -, referindo-se a toda produção cultural da humanidade.

O apóstolo Lucas, no livro de Atos 25:16 (ARA), descreve a exposição de Festo ao Rei Agripa em relação à resposta que havia dado aos sacerdotes e anciãos judeus no que diz respeito à queixa que eles fizeram de Paulo: “A eles respondi que não é costume dos romanos condenar quem quer que seja, sem que o acusado tenha presentes os seus acusadores e possa defender-se da acusação.” Aqui, o termo “costume” é utilizado para a tradução de εθος – ethos -, que, segundo penso, também poderia ser entendido por cultura. 

Com um conceito mais ou menos consolidado no Século XIX por vários intelectuais, a exemplo de E. B. Tylor em sua obra “Cultura Primitiva”, cultura foi consensualmente entendida como um conjunto de costumes, modos de ser e habilidades adquiridos pelo homem em sociedade, tais como os que se dão no campo das artes, das crenças, das ciências, dos saberes, da moral, etc. Mesmo assim, contudo, é preciso dizer que este conceito não tem despertado a atenção que merece na teologia cristã. Com efeito, os cristãos têm subestimado a importância do fenômeno da expressão da arte, da ciência, dos hábitos e costumes humanos na caminhada da fé em Jesus Cristo. Tanto é assim que, não demoraria muito, já no Século XX, as igrejas pagariam o preço do menosprezo pela estudo da cultura e esse preço seria grande demais, pois vinha na forma do afastamento de um sem-número de pessoas da fé, em especial jovens. 

A necessidade das igrejas de darem conta do fenômeno da cultura passou a ser algo palpável: os jovens cristãos quando se expunham mais diretamente à cultura, seja porque iam à universidade, saíam para morar em outro lugar ou outro motivo, transformavam-se em suas convicções morais e religiosas. A resposta a essa necessidade se deu a partir do Século XX pela subsequente abertura das igrejas para aprofundamento do entendimento de como deveriam relacionar-se com a cultura. Essa abertura, contudo, foi maliciosamente utilizada por grupos de teólogos comunistas com o intuito de infiltrar ideias anti-cristãs na própria igreja: para eles, o evangelismo cristão deveria relacionar-se com cultura não a partir de uma perspectiva de influenciá-la, mas sim de atender primordialmente às demandas da responsabilidade social. 

Em outras palavras, a necessidade de estabelecimento de um engajamento da igreja com o mundo e a cultura ao seu redor, até para que pudesse se equipar para a guerra cultural, foi maliciosamente utilizada por teólogos comunistas como justificativa para infiltrar na igreja as ideias destrutivas do próprio cristianismo. Isso, gostaria de deixar muito claro, é um problema que ocorre até hoje, embora, repito, tenha ganhado bastante força já na segunda metade do século passado. 

Para que tenhamos uma ideia, o Pacto de Lausanne, que decorreu da Conferência Mundial de Evangelização de 1974, em vez de ter servido como um momento de estabelecimento de estratégias de como as igrejas deveriam interagir e influenciar a cultura, foi em grande parte uma plataforma para que teólogos comunistas sulamericanos propusessem um atrelamento da prática do evangelismo com pautas de manipulação da massa, como as que, por exemplo, permanecem até hoje sob os atrativos nomes de justiça social, missão integral ou teologia de libertação. Para eles, a interação se daria pela inteira subordinação do cristianismo às pautas ideológicas comunistas, que têm por fim a dominação das massas e o próprio fim do incentivo ao sobrenatural nas igrejas. 

A reação à ideia de subordinação do cristianismo à cultura se deu pelo fortalecimento da postura diametralmente oposta, ou seja, a que advoga que o Cristianismo deve impor-se radicalmente à cultura, apartando-se por completo de quaisquer de suas manifestações. Para esta corrente, em certa medida também relativamente comum hoje em dia, se um cristão se envolve com ciência ou com a cultura, ele está traindo o próprio evangelho. O problema aqui é que se promove um ambiente anti-intelectualista na experiência cristã, em que as pessoas, uma vez expostas ao mundo fora das paredes da igreja, se tornam vulneráveis aos ataques intelectuais das ideologias anti-cristãs. 

A solução mais adequada, certamente, está no equilíbrio. A propósito, o jornal The Princeton Theological Review (XI (1-4), 1) publicou em 1913 um artigo de título Christianity and Culture – Cristianismo e Cultura -, de autoria de J. G. Machen. Nele, abordando como o cristianismo deve relacionar-se com a cultura, o autor defende uma abordagem que chama de via da consagração e a explica da seguinte forma: “Em vez de destruir as artes e as ciências ou ser-lhes indiferentes, cultivemo-las com todo o entusiasmo do mais verdadeiro humanista, mas ao mesmo tempo consagremo-las ao serviço do nosso Deus.” Parece-me ser a postura de Daniel e seus amigos, que não se negaram a ir para a “universidade” da Babilônia, não se negaram de aprenderem novas línguas e culturas, mas se mantiveram fiéis ao que sabiam ser a verdade. Da mesma forma, a via da consagração é o que verificamos na orientação que o apóstolo Paulo nos dá em sua epístola das Colossenses 3:23-24 (ARA): “Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor e não para homens, cientes de que recebereis do Senhor a recompensa da herança. A Cristo, o Senhor, é que estais servindo”.

Por isso, os ministérios de ensino das igrejas têm de agir estrategicamente para reverter a prática educativa das escolas ditas seculares de excluírem completamente o ensino da influência cristã na construção cultural da civilização. Nas escolas e universidades, ensinam-se história e geografia sem menção ao papel essencial desenvolvido pelo cristianismo nas mais diversas conquistas da civilização; ensinam-se ciências naturais sem nem fazer menção ao fato de que foi o entendimento cristão de que Deus criou o universo de forma inteligível que possibilitou a ciência, que nada mais é do que o esforço científico de entendê-lo pela inteligência. Aliás, a esse respeito, não se diz que somente nos países de matriz cristã que a ciência moderna floresceu ou que as maiores e melhores universidades do mundo, tais como Harvard, Princeton, Yale, Cambridge ou Oxford, entre tantas outras, nasceram como escolas de discipulado cristão. 

Como, então, o cristão deve relacionar-se com a cultura? Ora, o cristão deve influenciá-la por meio da produção artística, científica, intelectual, literária, etc., que seja consagrada a Deus. Aliás, no início deste século, Roger Scruton dedicou parte de sua obra ao esclarecimento da objetividade do conceito de beleza, elemento estético da cultura, que, inclusive, deve ser entendido como uma forma de nos elevar a Deus. Cultura e Cristianismo, neste sentido, encontram o caminho de conciliação. Cabe agora a cada um de nós estabelecer as bases para levarmos adiante, com excelência e coragem, o mandado cultural que nos foi proposto.

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