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A Autoverdade

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Você já parou para pensar “o que é verdade?” Aí está a resposta negligenciada por Pilatos que reverberou através dos séculos da experiência humana até a atualidade. Mesmo diante da verdade, Pilatos preferiu “lavar as mãos” e se abster de tal realidade (cf Mt 27.24). Por outro lado, podemos sentir e reconhecer a vontade angustiante do homem de conhecer a verdade, bem como sua impoluta essência. A busca do homem pela verdade é nobre e pedagógica (cf Sl 25.5), sendo tal uma prerrogativa humana, uma habilidade distinguível, o que difere o ser humano do resto da criação visível de Deus. A busca pela verdade é uma tarefa especial que deve caminhar ao lado do desejo de glorificar a Deus, a mais excelente de muitas boas razões para alcançar a salvação.

A premissa inicial que o homem em busca da verdade deve reconhecer é que há uma fonte única de verdade. O princípio da existência de algo pressupõe uma origem de tal coisa. Quando vemos um avião no hangar de um aeroporto ou um belo terno em uma vitrine de loja, imaginamos a existência de uma estrutura ou rota produtiva desses produtos, que pode ser rastreada desde o fabricante. A existência do universo (cosmo) visível e da realidade espiritual (invisível), indubitavelmente, nos remete à uma fonte. Até mesmo aqueles que recusam ou resistem à criação divina estão preocupados com as questões relacionadas a origem de todas as coisas. O fato é que a verdade tem uma origem, e para persegui-la sabiamente, devemos entender qual é a sua verdadeira fonte.

Tanto a razão (racionalidade) quanto as Escrituras nos dizem que Deus é a fonte de toda a verdade. A razão nos informa que apenas um ser divino e onipotente poderia originar toda a verdade, e esta também é a mensagem da Bíblia. O Deus das Escrituras é “a verdade” (Dt 32.4). Ele é “grande em beneficência e verdade” (Êx 34.6), e sua “palavra é a verdade” (Jo 17.17). Cristo disse a seus seguidores: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14.6), e explicou o propósito de sua vinda como “testemunho da verdade” (Jo 18.37). Isso também se revela no testemunho do crente, de que “a verdade está em Jesus” (Ef 4.21).

À medida que nos aprofundamos no relacionamento com Deus e Sua Palavra nos tornamos conscientes de Sua presença, orientação, providência, amor, força e suficiência para cada situação. O filósofo Immanuel Kant era cético, no entanto, ele no que diz respeito à capacidade humana de racionar sobre o mundo transcendente de Deus. Nesse âmbito, ele ofereceu o que chamou de “argumento moral para a existência de Deus”, um argumento baseado no que ele chamou de “senso universal de dever” implantado no coração de todo ser humano. O filósofo acreditava que todo ser humano transportava em si um senso genuíno do que deveria fazer em determinada situação. Ele chamou isso de “imperativo categórico”. Kant creditava a plenitude da alma a duas coisas: aos céus fascinantes, no espaço, e a lei moral, no íntimo do ser humano. Até mesmo na esfera da filosofia secular tem havido, historicamente, um reconhecimento da consciência divina1, haja vista que boa parte dos principais pensadores da humanidade eram teístas, e muitos, cristãos.

Ao longo da história, a duras penas em alguns lugares do mundo, a consciência pôde ser vista pela lente ética transcendental que habita em Deus. Entretanto, com o surgimento da revolução moral de nossa cultura, especialmente ocidental, surge uma abordagem que difere da consciência, abordagem esta chamada de (cosmo)visão relativista. Muitos argumentam e defendem que estamos na era do relativismo, na qual valores e princípios cristãos são considerados interesses e desejos ultrapassados de um grupo específico de pessoas, ancorado em determinado momento histórico. Copiosamente ouvimos que não há absolutos no mundo de hoje, tudo “depende” da circunstância e do “meu” ponto de vista, da “minha própria verdade”. 

Em suma, a verdade é aquilo que está em conformidade com o real. A raiz latina desta palavra também a associa ao que pode ser verificado, provado. A base da fé cristã é Jesus Cristo, e a fonte basilar e estruturante do nosso conhecimento advém da Palavra de Deus, da Bíblia Sagrada, onde a verdade está embricada em cada página, desde o Velho até o Novo Testamento, uma verdade íntegra, indissociável e indirimível. A verificação e comprovação científica do conteúdo bíblico anda a passos largos, demonstrando a fidedignidade da Bíblia Sagrada. Cada vez mais, evidências, achados arqueológicos e documentos escriturísticos são descobertos, descritos e mapeados em uma velocidade impressionante. A veracidade da Palavra de Deus se dá pelos campos teológico e científico, em que este último é uma mera ferramenta descritiva da criação do Criador. Não se trata de uma constatação momentosa, como as dadas evidências científicas apregoadas pela ciência moderna, mas, sim, de uma verdade perene que, dia após dia, se torna mais cristalina e sublime. Eu acredito nos laços matrimoniais entre teologia, filosofia e ciência, destacando que a primeira é a gênese do pensamento humano. Seu elevado grau de complementaridade assume o “driver” descritivo, físico-histórico e suprahumano do processo de criação e busca pela verdade. 

A verdade no terreno bíblico

No terreno bíblico, o termo mais comum para “verdade” no Antigo Testamento é אֱמֶת (emeth). O alcance semântico de אֱמֶת (emeth) inclui fatualidade e validade, bem como fidelidade, firmeza e confiabilidade. Já na Septuaginta, este termo é mais frequentemente traduzido usando ἀλήθεια (alētheia). Os termos πίστις (pistis) e δικαιοσύνη (dikaiosynē) também são usados neste caso, ocasionalmente. O termo “verdade” pode ser um predicado tanto de pessoas quanto de proposições. Já no Novo Testamento, os termos mais comuns associados à verdade são ἀλήθεια (alētheia, “verdade”), ἀληθής (alēthēs, “verdadeiro”), ἀληθινός (alēthinos, “verdadeiro”, “real”), ἀληθεύω (alētheuō, “contar a verdade”), e ἀληθῶς (alēthōs, “verdadeiramente”). Essas palavras são usadas, basicamente, em três sentidos principais: i) fatualidade, ii) fidelidade e confiabilidade, e, iii) realidade2.

i) Fatualidade

No sentido fatual, a verdade pode ser usada para comunicar uma sensação de estar de acordo com um fato ou realidade, em oposição a ser falso ou errado. Este é o sentido dominante de “verdade” no Novo Testamento. Seus usos frequentes incluem: a) caracterização de uma qualidade de fala, alvitrando honestidade ou sinceridade (Mc 5,33; Jo 4.18; 8.40; 16.7; At 26.25; 2 Cor 7.14; 12.6); b) contraste entre dizer a verdade com mentir (Rm 9.1; Ef 4.25; 1 Tm 2.7); e, c) exposição ou descrição do Evangelho (2 Co 4.2; Gl 2.5, 14; Ef 1.13; Cl 1.5; Hb 10.26; 3 Jo 3–4).

ii) Fidelidade e Confiabilidade

Embora a verdade como fidelidade ou confiabilidade seja mais comum no Antigo Testamento, ela é usada também no Novo Testamento em Romanos 3.4, 7 e 15.8. Em Romanos 3.4, Paulo ressalta que todo homem é pecador, mentiroso e ludibriador, e nossa confiança deve estar centrada em Deus, na verdade do Senhor. No versículo 7, Paulo advoga contra uma natureza moral distorcida, realçando a justiça de Deus sobre todo mal e pecado, indo ao encontro dos argumentos dos seus opositores que combatiam o Evangelho pregado por ele com argumentos errôneos. Os contrários de Paulo diziam que o Evangelho anunciado por ele versava sobre a permanência no pecado, argumento este equivocado, ao tento que Paulo deixava claro que aqueles que pertencessem a Cristo “morreram para o pecado”. A confiança em Cristo nos sepulta com Ele na morte pelo batismo. Ainda na mesma epístola paulina, na passagem de Romanos 15.8, o apóstolo torna cristalino que ao cumprir as promessas salvíficas de Deus aos judeus, a verdade a e fidelidade divina denotam a fidelidade do Senhor à sua Palavra, de forma evidente.

iii) Realidade

Na esfera de realidade, a verdade pode ser usada para descrever o que é real e genuíno, em oposição ao falso ou apenas uma imitação. Também indica a completitude, descrevendo o que é completo e o que é incompleto. A realidade se dá pelo teste dos acontecimentos, dos fatos. Sua validação acontece pelo verdadeiro. À luz da Bíblia, podemos perceber a realidade mergulhada nas águas da verdade. Deus revela aos seres humanos a verdadeira luz, que ilumina – Jesus é a verdadeira luz (João 1:9). A honra é tida como a verdadeira adoração, pois o Pai deseja verdadeiros adoradores (João 4:24-24). Jesus é o verdadeiro pão do céu; seu corpo é o verdadeiro alimento de vida (João 6:32,55). Jesus é a videira verdadeira que, genuinamente, produz bom fruto (João 15:1). A verdade de Deus é real, mas muitas vezes é trocada pela mentira, pecado fundamental da humanidade (Romanos 1:25). O verdadeiro é descrito na realidade profunda do sacerdócio e sacrifício de Cristo, na ministração de Jesus no verdadeiro tabernáculo (Hebreus 8:2; 9:24). João aplica de maneira realista o amor de Deus (1 João 3:17), destacando que o amor deve ser realizado não com palavras, mas em verdade (1 João 3:18).

Acolher e defender a verdade e autoridade bíblica, bem como sua completa integridade, tem sido um desafio do nosso tempo. A teologia liberal tem contaminado o corpo de Cristo ao redor do mundo com altas doses do vírus do relativismo, combinado com a infecção desenfreada de apostasia à veia, além do elevado nível de propagação de ignóbeis mentiras. Mentiras estas travestidas de doutrinas antropocêntricas e hedonistas, calçadas pelo salto da soberba, puramente arraigadas ao bel prazer humano. 

Cada vez mais o permissivismo moral encalacrado nas doutrinas liberais, travestido da tal “doutrina da hipergraça”, tem tomado conta das igrejas evangélicas em diferentes partes do globo terrestre. Muitos cristãos são aconselhados e mentoriados por pessoas espiritualmente cegas, moralmente desorientadas e desconhecedoras da Palavra. Alguns seriam cristãos melhores se estivessem sob a influência de lideranças de bons servos, verdadeiros cristãos. Se você tem uma vida cristã esporádica ou casual, aconselho-o a recalcular sua rota, buscando caminhar pelos caminhos retos do Senhor. Isso o levará a um serviço frutífero, e, consequentemente, a um caráter sóbrio e santo. Torne-se íntegro na Terra, para que Jesus possa justifica-lo no Céu. 

A verdade reinante no mundo secular e em parte da igreja

A navalha afiada do pós-modernismo tem tentado ferir os órgãos vitais da verdade cristã. O pós-modernismo pode ser descrito como um conjunto de práticas críticas, estratégicas e retóricas que empregam conceitos como diferença, repetição, traço, simulacro e hiper-realidade para desestabilizar outros conceitos, como presença, identidade, progresso histórico, certeza epistêmica e univocidade de significado. O modernismo filosófico em questão no pós-modernismo começa com a “revolução copernicana” de Kant, a partir da suposição de que não podemos saber as coisas em si mesmos e que os objetos do conhecimento devem estar em conformidade com nossas faculdades de representação. Nessa perspectiva, ideias como Deus, liberdade, imortalidade, mundo, o início de todas as coisas e o fim de todas as coisas têm apenas uma função reguladora (ou limitadora) para o conhecimento, já que não podem encontrar instâncias satisfatórias entre os objetos de experiência3,4.

Podemos notar que os pós-modernos seguem o exemplo de Nietzsche e Heidegger, entretanto, seu objetivo em repudiar a filosofia moderna é bastante semelhante ao caminho seguido por Wittgenstein5. A diferença é que, enquanto os discípulos de Wittgenstein, pelo menos aqueles engajados na teoria ética, voltaram-se para uma revitalização contemporânea dos insights aristotélicos, um número considerável de seus pares pós-modernos que seguiram Heidegger e Nietzsche na rejeição da filosofia moderna, adotou um relativismo radical para seu sistema filosófico6.

Diante das situações que permeiam a pós-modernidade, observamos diferentes contradições encontradas em nossas próprias realidades: as fronteiras reais (que seriam “transparentes” com a advinda tecnologia) são agora reproduzidas de forma virtual; os processos de comunicação estimularam a “socialização”, mas ao mesmo tempo exacerbaram as divisões ideológicas e socioculturais; as estruturas governamentais e empresariais que estão aumentando sua influência (chamadas por alguns por estruturas da “pós-democracia”)7, estão competindo entre si e com novos atores pela liderança na comunicação midiática; o fenômeno da “pós-verdade”8 se manifesta pela rejeição do princípio da objetividade, confiabilidade e racionalidade. A imersão e disputa de comunicantes em um ambiente virtual apresentam uma série de consequências negativas para a sociedade, incluindo a erosão das normas morais e sociais básicas, com o choque profilático dos algoritmos digitais (“pós-humanismo”)9. Outra linha alinhavada no tecido temporal mais recente é o pós-cristianismo. Este último se refere a uma mudança cultural longe da autoridade do cristianismo e ao declínio de sua influência na sociedade. Ele é caracterizado por uma crescente secularização, pluralismo e diversidade de crenças, bem como pela rejeição dos valores e práticas cristãs tradicionais.

Nas sociedades pós-cristãs, a religião não é mais vista como um componente necessário na identidade pessoal ou societal, e os indivíduos são livres para escolher suas próprias crenças e estilos de vida. Me muitas partes do mundo, o papel da igreja na vida pública diminuiu, e a autoridade moral das instituições religiosas tem sido questionada. O pós-cristianismo também envolve uma reavaliação das crenças e práticas cristãs históricas, com um foco na “espiritualidade” pessoal e desacreditação de dogmas e verdades bíblicas. Muitos pós-cristãos rejeitam as reivindicações privativas do cristianismo e adotam uma abordagem mais “inclusiva” e “pluralista” da espiritualidade (sequestrando e modificando o verdadeiro significado de inclusão e pluralidade), distorcendo a Palavra de Deus e seus verdadeiros ensinamentos. Paulo predizia este tempo em quando instruiu Timóteo: “Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, se rodearão de mestres segundo as suas próprias cobiças. Como que sentindo coceira nos ouvidos. Eles se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas” (2Tm 4.3-4). Esta passagem revela que muitas pessoas serão dirigidas por suas próprias vontades e paixões carnais, aceitando prontamente discursos e fábulas que satisfaçam seus instintos em vez de verdade. Notavelmente, Paulo fala de um futuro que já chegou, destacando-se o rechaçamento da sã doutrina e o culto aos próprios desejos. Em geral, o pós-cristianismo reflete uma mudança em direção a uma sociedade mais secular e individualista, onde as crenças e práticas cristãs tradicionais não são mais vistas como centrais para a identidade cultural e religiosa da população.

Então, o que é autoverdade?

Após uma extensa introdução, vamos falar da autoverdade. Podemos dizer que a palavra “auto-verdade” refere-se à compreensão ou percepção subjetiva de um indivíduo sobre o que ele acredita ser verdade. Um ponto crucial a considerar é como o individualismo e a subjetividade moldam a compreensão da verdade de um indivíduo. Na sociedade contemporânea, que valoriza a “falsa independência”, a autonomia e o individualismo, as pessoas tendem a priorizar suas experiências e percepções pessoais em detrimento de (possíveis) fontes externas de verdade ou autoridade. Essa tendência contribuiu para a consolidação do relativismo nas sociedades atuais em que os indivíduos escolhem seletivamente fatos para apoiar suas crenças e deflagrar suas opiniões. Adentrando a essa perspectiva, também vale a pena discutir brevemente um possível conflito entre a autoverdade e a verdade objetiva. 

Embora a percepção de verdade de um indivíduo possa ser válida para ele pessoalmente, ela pode não se alinhar com a realidade objetiva. Isso pode criar dificuldades em áreas como a ciência, onde a verdade objetiva é essencial para o progresso e a inovação, por exemplo. Para os cristãos, a verdade objetiva é baseada na crença de que existe uma única realidade que existe independentemente de nossas percepções e experiências subjetivas. No campo do cristianismo, a verdade objetiva não é algo que criamos ou manipulamos, mas sim algo que descobrimos e nos alinhamos a ela. É a base sobre a qual a fé e a doutrina cristãs são construídas, fornecendo um quadro “supraexistencial”10 para entender o mundo e nosso lugar nele. Isso significa que a compreensão cristã da verdade objetiva não é apenas uma questão de preferência pessoal ou opinião, mas sim uma afirmação da realidade que está fundamentada na revelação de Deus através da Escritura e na pessoa de Jesus Cristo. Nesse sentido, a verdade objetiva não é algo determinado pela opinião da maioria ou pelos padrões culturais ou determinísticos, mas sim algo que está fundamentado na natureza e no caráter de Deus. Os cristãos acreditam que Deus é a fonte única e última de toda a verdade, e que a verdade objetiva está, portanto, enraizada em Sua natureza divina e Seus atributos. Essa compreensão da verdade objetiva tem implicações importantes para a ética e a moral cristãs, pois fornece uma base para discernir o certo do errado e entender o valor e a dignidade inerentes a todos os seres humanos criados à imagem de Deus.

A autoverdade pode ser influenciada pelos vieses e heurísticas cognitivos de um indivíduo. Pesquisas indicam que os seres humanos tendem a interpretar informações de maneira que confirmem suas expectativas existentes, levando a um viés de confirmação e exposição seletiva. Examinar as implicações da autoverdade em diferentes áreas da vida, incluindo psicologia, política e educação, por exemplo, também é importante. Por exemplo, como o conceito de autoverdade impacta a saúde mental de um indivíduo? Quais são as ramificações da autoverdade no discurso político e na formulação de ações políticas? Como os educadores cristãos podem promover o pensamento crítico (que requer um lastro de conhecimento prévio) e a objetividade em uma sociedade que prioriza as informações rápida (e não conhecimento), o imediatismo e as opiniões puramente pessoais? Embora a autoverdade não seja um conceito amplamente discutido pela literatura acadêmica internacional atualmente, ela levanta questões significativas sobre a interseção da subjetividade, secularismo e individualismo. Necessariamente, mais pesquisas e discussões são indispensáveis para entender as implicações da autoverdade em diferentes áreas da vida humana e seu impacto em nossa compreensão da verdade e da realidade dentro do ambiente cristão. 

Partindo do que já foi dito sobre o principal tema deste artigo, eu defino a autoverdade como sendo uma realidade adaptada, modificada ou translatada ao idioma único e atomista do próprio ventre, ou seja, das próprias vontades e demandas humanas. De acordo com esta definição, eu posso ver o mundo de acordo com meus sentimentos e ilusões, deixando de lado fatos e acontecimentos reais e fatos objetivos. Neste senso, os acontecimentos são interpretados a partir das conclusões que já cultivo e carrego no meu próprio âmago, sem dar chance ao contraditório ou a inquéritos. Em suma, o portador da autoverdade advoga que sua cosmovisão acomoda a única lente que pode corrigir a visão do mundo. 

Alguns acadêmicos da Teologia Pentecostal apontam que a falta de fé, a crença em uma verdade, pode ser proveniente dos efeitos noéticos do pecado11, já que estes, segundo tais estudiosos, prejudicaram as faculdades humanas. Segundo eles, a depravação humana gerou uma obscuridade na mente do homem, afetando diretamente a capacidade de reconhecer a verdade. Os mesmos ainda dizem que os efeitos noéticos do pecado conduziram o intelecto à quase incapacidade de perceber a realidade de forma clara e objetiva. Embora a queda possa ter deturpado as faculdades humanas, não as destruiu completamente. Os escritores da Bíblia, inspirados pelo Espírito de Vida, frequentemente recorreram à mente dos incrédulos e questionadores, utilizando evidências e argumentos racionais e lógicos para reagir ou apoiar suas alegações cristãs. Além do mais, a Bíblia alerta que conhecer a verdade é essencial para se evitar o pecado e ser escravizado por ele (Jo 8.32). Na vida cristã, a verdade é um atributo valorável, com um fim salvífico, enquanto a mentira e a falsidade são considerados pecados graves. A própria consciência de pecado envolve a percepção de um desvio da verdade e da vontade de Deus. Porquanto, a busca pela verdade é uma tarefa essencial para a vida e caminhada cristã.

A resposta secular sobre a existência da Verdade Bíblica é que a verdade é algo complexo e subjetivo. Segundo os respondentes secularizados nem sempre é fácil distinguir a verdade absoluta da verdade relativa. Eles defendem que a verdade pode ser distorcida por nossos próprios preconceitos, preconcepções e até mesmo pelas limitações humanas em si. Portanto, o cristão deve buscar constantemente a verdade na Bíblia, na reflexão, no diálogo com outros cristãos e em outras fontes confiáveis (sejam elas literárias ou não). A busca pelo entendimento da verdade, no caso dos verdadeiros cristãos, não é um solilóquio, um monólogo interior solitário. Isso porque a verdade não é algo isolado e exclusivista, ela está ligada ao amor, à comunhão, à graça e à justiça de Deus. A verdade vai além de ser uma mera alegria epidérmica e cosmética. Ou tão somente uma especulação intelectual para afirmar seus títulos, realizações profissionais e vaidades. A verdade deve ser manifestada pelo intelecto e comunicada ao exterior (ao próximo). A busca pela verdade começa dentro do intelecto, mas não finda por lá. 

A palavra “intelecto” é formada por outras duas palavras latinas: inter (dentro) e lectus (leitura). Logo o saber intelectual é um “ler por dentro”, “ler o próprio interior”, o que, em outras outras palavras, significa contatar o próprio ser, aceitá-lo, manifestá-lo. Manifestar a verdade no campo teológico e cristão, por exemplo, se refere ao ato de demonstrar ou tornar evidente a verdade das doutrinas ou crenças religiosas. Isso pode ser alcançado por meio de várias formas, como pregar a Palavra de Deus, interpretar e analisar textos religiosos, participar de debates teológicos e conduzir pesquisas e estudos no campo da teologia em suas diferentes frentes. Em essência, neste campo, manifestar a verdade envolve apresentar e defender as crenças e ensinamentos de uma religião ou denominação específica e buscar convencer outros de sua validade e importância.

Para manifestar a verdade não podemos estar ilhados pela nossa própria ignorância (atomismo social), ou mergulhados por uma filosofia pragmatista, baseados estritamente por decisões técnicas e financeiramente vantajosas. A busca pela verdade envolve negar a si mesmo. O campo cristão requer uma investigação minuciosa das alegações, doutrinas e práticas do cristianismo. Essa busca começa reconhecendo a natureza da verdade e a fonte última da verdade, que é Deus. Os estudiosos e teólogos cristãos reconhecem que a busca pela verdade é um processo contínuo que exige tanto a investigação intelectual quanto o discernimento espiritual. A investigação teológica envolve o estudo de textos religiosos, análise de contextos históricos e culturais e a contemplação das implicações filosóficas e éticas dos ensinamentos cristãos. O discernimento espiritual envolve a oração, meditação e introspecção sobre o relacionamento pessoal com Deus e a orientação do Espírito Santo.

A busca pela verdade no campo cristão também envolve o engajamento em diálogo com pessoas, tanto dentro como fora da comunidade eclesial. Essa conversa promove uma melhor compreensão de diferentes pontos de vista e aprimora as próprias crenças e entendimentos da verdade. Além disso, a busca pela verdade precisa estar aberta a desafios e correções. A busca pela verdade sempre está fundamentada no desejo de compreender completamente a Deus. 

O que podemos concluir?

Deus revelou sua verdade tanto naturalmente quanto sobrenaturalmente — naturalmente no universo criado, sobrenaturalmente em sua Palavra escrita e na encarnação de Cristo. Negligenciar qualquer esfera da revelação e centrar-se na sua própria ilusória “verdade” é abdicar da sua responsabilidade na busca da verdade. Infelizmente, essa abdicação é uma característica saliente da cena eclesial de hoje. Por um lado, a teologia liberal dentro das igrejas e o secularismo têm buscado aleijar a busca pela verdade, limitando esta busca à ordem da natureza humana limitada. Tendo decidido a priori que toda a verdade deve ser encontrada na esfera da demonstração empírica, o liberal e o secularista, assim, impedem a possibilidade de encontrar a verdade que reside no reino sobrenatural.

A necessidade de procurar a verdade está enraizada tanto na experiência humana quanto na revelação bíblica. Caso você pense que a verdade pareça fácil de alcançar, precisamos nos lembrar da variedade de perguntas bíblicas sem respostas. Somente teremos todas as respostas quando vier o que é perfeito, pois então o que é imperfeito desaparecerá (cf 1Co 13.10). Considerando isso, não podemos relevar ou fechar os olhos ao ver que, em muitos púlpitos, inverdades são colocadas com verdades e são abraçadas e ensinadas em igrejas evangélicas. Suas visões relativistas sobre muitas questões são claramente incompatíveis com a verdade bíblica. Não obstante, a negligencia da busca pela Palavra provocou um evangelho suxo, bambo, fraco. Este falso evangelho se flexiona para todos os lados e correntes, se opondo a integridade e retidão divina (cf Sl 25.21).

As Escrituras enfatizam a importância de buscar a verdade. Provérbios nos ordena a “comprar a verdade” (Pv 23.23), implicando que adquirir a verdade requer esforço. Em 1 Timóteo 2.4, Paulo escreve que Deus deseja que todas as pessoas venham a conhecer a verdade, indicando que a verdade é algo a ser alcançado por meio de aprendizado e busca. Os bereanos foram elogiados por não simplesmente aceitarem o que lhes foi dito, mas sim por pesquisarem as Escrituras diariamente para verificar sua autenticidade (At 17.11). A busca pela verdade é parte da experiência humana, que se tornou necessária após a queda adâmica. Em nosso estado original de inocência, como imagem e semelhança de Deus, possuíamos o conhecimento verdadeiro (cf. Cl 3:10). No entanto, após a queda, a humanidade se afastou da verdade e se enamorou pela mentira. Jeremias lamentou que em sua época ninguém na terra era “valente pela verdade” (Jr 9:3). Que isso nunca seja verdade na nossa comunidade de crentes! A Escritura enfatiza a necessidade de buscar a verdade e, ao encontrá-la, devemos viver de acordo com ela e ser ousados em sua defesa.

1 Sproul, R. C. (2014). Como Posso Desenvolver uma Consciência Cristã? (T. J. Santos Filho, Org., M. Fonseca dos Santos Jr., Trad.) (1a Edição, Vol. 14, p. 8–9). São José dos Campos, SP: Editora FIEL.

Ritzema, E. (2016). Verdade. Em J. D. Barry, D. Bomar, D. R. Brown, R. Klippenstein, D. Mangum, C. Sinclair Wolcott, … W. Widder (Orgs.), The Lexham Bible Dictionary. Bellingham, WA: Lexham Press.

Stanford Encyclopedia of Philosophy. Postmodernism. 2015.

Kant, Immanuel, 1787, Critique of Pure Reason, 2nd edition, Norman Kemp Smith (trans.), London: Macmillan & Co., Ltd., 1929; reprinted 1964.

5 O pensamento filosófico de Wittgenstein passou por uma mudança significativa, conhecida como “virada linguística”, que enfatizou a importância da linguagem na formação de nossa compreensão do mundo. Essa virada foi influenciada por seu trabalho anterior sobre a relação entre linguagem, pensamento e realidade, que enfatizou a importância da correspondência entre esses três elementos. O trabalho posterior de Wittgenstein rejeitou a ideia de uma linguagem privada e enfatizou a natureza social e contextual do uso da linguagem. Ele argumentou que a linguagem não é um conjunto fixo de regras ou definições, mas sim uma ferramenta flexível que é moldada por seu uso em contextos específicos. Essa mudança de ênfase teve um impacto significativo no desenvolvimento da filosofia analítica e continua a influenciar os debates filosóficos contemporâneos.

Ludwig Wittgenstein, Philosophical Investigations, translated by G. E. M. Anscombe, second edition, Macmillan Co., New York, 1958.

A ideia de pós-democracia nos ajuda a descrever situações em que o tédio, a frustração e a desilusão se instalaram após um momento democrático; quando poderosos interesses minoritários se tornaram muito mais ativos do que a massa de pessoas comuns em fazer o sistema político funcionar para eles; onde as elites políticas aprenderam a administrar e manipular as demandas populares; onde as pessoas precisam ser persuadidas a votar por meio de campanhas publicitárias de cima para baixo (Coulin Crouch, “Coping with Post-Democracy”, Fabian Society – fabians.org.uk).

Era da “pós-verdade”: à medida que as mentiras políticas e as notícias falsas florescem, os cidadãos parecem não apenas acreditar na desinformação, mas também tolerar a desinformação. Uma preocupação central com esta era da pós-verdade é que as pessoas acreditam na desinformação. Quando as pessoas toleram a desinformação, os líderes e governantes podem dizer mentiras flagrantes sem prejudicar sua imagem pública. Dessa forma, para entender a era da “pós-verdade”, precisamos entender não apenas a psicologia da crença, mas também a psicologia moral da desinformação. Atualmente, o pós-estruturalismo e a hermenêutica são frequentemente agrupados como “interpretativismo”, sendo, supostamente, parcialmente responsável pela “era da pós-verdade”. Neste âmbito, o problema do relativismo é ver todos os sistemas simbólicos como inerentemente violentos. Diante desse cenário, os fornecedores de desinformação não precisam convencer o público de que suas mentiras são verdadeiras. Em vez disso, eles podem reduzir a condenação moral por esses atos, convencendo-nos de que uma falsidade poderia ter sido verdadeira ou poderia se tornar verdadeira no futuro (imaginação), nos expondo à mesma desinformação várias vezes, se necessário for (repetição). 

Embora as raízes do pós-humanismo já possam ser traçadas na primeira onda do pós-modernismo, a virada pós-humana foi totalmente encenada por teóricas feministas nos anos 90, no campo da crítica literária – o que mais tarde será definido como pós-humanismo crítico. Simultaneamente, os estudos culturais também o abraçaram, produzindo uma tomada específica que tem sido referida como pós-humanismo cultural. No final da década de 1990, o pós-humanismo (crítico e cultural) desenvolveu-se em uma investigação mais focada filosoficamente (agora referido como pós-humanismo filosófico), em uma tentativa abrangente de reacessar cada campo de investigação filosófica por meio de uma consciência recém-adquirida dos limites da pressupostos antropocêntricos e humanísticos anteriores. O que o pós-humanismo coloca em jogo não é apenas a identidade do centro tradicional do discurso ocidental, ele descarta a centralidade de um centro em sua forma singular, tanto em seus modos hegemônicos quanto em seus modos resistentes. Seus centros, porém, são mutáveis, nômades, efêmeros. Suas perspectivas devem ser pluralistas, multifacetadas, abrangentes e inclusivas (Francesca Ferrando, “Posthumanism, Transhumanism, Antihumanism, Metahumanism, and New Materialisms: Differences and Relations“, Existenz 8/2, 2013, 26-32).

10 Trago este termo como um neologismo, que difere da definição da corrente filosófica do Existencialismo. O “supraexistencialismo” seria aquilo que está acima da natural existência humana, em que o sobrenatural se sobrepõe a análise de existência da vida humana no mundo físico, terreno. Aqui o aspecto espiritual é a estrutura superior e norteadora.

11 Amos Yong. (2013). The Spirit Poured Out on All Flesh: Pentecostalism and the Possibility of Global Theology. Baker Academic. Neste livro, Yong explora as implicações teológicas da crença pentecostal nos efeitos noéticos do pecado e como isso molda a maneira como os pentecostais entendem a condição humana e a obra do Espírito Santo. Os efeitos noéticos do pecado se referem ao impacto que o pecado tem na mente ou intelecto humano. Segundo autores pentecostais, o pecado afetou a capacidade dos seres humanos de perceber e compreender a verdade. No pensamento pentecostal, o pecado não é apenas uma falha moral, mas também uma falha cognitiva. A queda da humanidade no pecado distorceu a razão humana e a tornou propensa a erro e engano. Isso significa que as pessoas não são mais capazes de compreender a verdade sobre Deus, si mesmas e o mundo com total precisão. A relação entre os efeitos noéticos do pecado e a verdade é complexa. Por um lado, os efeitos noéticos do pecado tornam difícil para os seres humanos apreender a verdade. O pecado obscureceu a mente e a tornou suscetível a falsidade e engano. Por outro lado, autores pentecostais argumentam que o Espírito Santo pode trabalhar para superar os efeitos do pecado e permitir que os crentes discirnam a verdade. Isso é visto como um aspecto chave da obra do Espírito Santo na santificação.

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