A fragilidade dessa proposta já fica exposta de imediato no título: ‘Linguagem Neutra e Não-binária’. Se houvesse um pouco mais de credibilidade nessa ideia, seus criadores e defensores abririam mão do gênero gramatical e usariam suas próprias regras para se referir a ela: ‘Linguagem Neutre ou Não Binári@’, por exemplo; mas não é assim que as vemos pulverizadas por aí. A incoerência já começa pelo nome, apesar do recém inventado gênero ‘nãobinarie’ – mas isso é assunto para outro artigo.
O filólogo Evanildo Bechara, que ocupa a cadeira de número 33 da ABL e é o coordenador da 6ª edição do VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), lançado em 2021, em entrevista, disse: “A gramática é como um edifício, você mexe na parte externa, que é a pintura, que são as palavras, mas não na estrutura, na parte interna. Você não altera as regras de gênero, assim como não se muda as regras de formação de plural e de conjugação dos verbos” .
Circulam na internet, incontáveis vídeos sobre o assunto. Chega a dar um arrepio leve na alma de um profissional de letras bravatas do tipo “Não mexam com a língua de Camões”! Acontece que não é só com a língua de Camões; é também com a de Shakespeare, a de Cervantes, de Dante, de Kant ou de Dostoiévski, isso sem mencionar as línguas orientais e eslavas. É preciso ter consciência de que esse não é um fenômeno exclusivo da língua portuguesa, mas sim um movimento universal, que envolve boa parte das línguas ocidentais, sobretudo as de origem anglosaxônicas e neolatinas.
Em 2021, por exemplo, foi divulgado na internet, um manual criado pela ala da maternidade do Hospital Universitário de Brighton e Sussex, no Reino Unido, orientando que a equipe de funcionários adotasse um novo tipo de linguagem a fim de incluir as ‘mães trans’. Nessa cartilha, foi sugerido que se trocasse, por exemplo, a palavra ‘mãe’ por ‘pessoa que amamenta’; ‘leite materno’ por ‘leite humano’ e, em lugar de ‘ala da maternidade’, ‘serviços perinatais’. Esse tipo de abordagem não traz necessariamente uma desconstrução morfológica das palavras, mas sim, da própria maternidade. Esse é um exemplo recente de como a língua pode ser usada como meio de conquista.
Já o dicionário Robert, um dos mais tradicionais em língua francesa, incluiu no ano passado em sua lista de verbetes o pronome pessoal neutro ‘iel’ – algo como ‘elu’ em português. Já não se trata aqui de usar os recursos existentes na língua a pretexto de criar uma linguagem inclusiva, mas sim, de desconstrução da estrutura morfológica e semântica da palavra para atingir esse objetivo. A iniciativa teve repercussão bastante negativa entre o meio acadêmico e a classe política. O ministro da Educação Jean-Michel Blanquet e a primeira-dama, Brigitte Macron, se manifestaram contra essa ação em suas redes sociais. O deputado François Jolivet é o autor do melhor argumento sobre esse assunto: “Esse tipo de iniciativa leva a uma língua danificada, que desune seus falantes em vez de reuni-los” – declarou ele em uma carta aberta. Alguns dicionários de língua inglesa também já incluíram pronomes neutros entre seus novos verbetes e, assim como o Robert, provocaram uma avalanche de reações contrárias ao reconhecimento ‘formal’ de tais palavras.
É indiscutível o fato de que a língua é um organismo vivo, pulsante e em constante transformação. Ela não é estática, mas está sempre em movimento e por isso, o surgimento de novas formas e a incorporação natural delas em situações de comunicação, geralmente não causam estranhamento, sobretudo quando partem de um senso comum.
O fato é que não se trata de uma evolução natural, mas de uma língua fabricada em laboratório e imposta aos falantes. Ela não nasce de uma espontaneidade no falar concreto e nem da necessidade de um todo, mas vem do desejo de um grupo que representa apenas uma parte do todo dentro da sociedade e pretende usar a língua como mais um meio de representatividade e visibilidade. Quanto à questão da inclusão, já está claro que é uma linguagem que exclui mais do que inclui. Se o usuário desse novo modo de falar e escrever pertencer a essa comunidade, pode se sentir incluído por meio dessa linguagem ‘neutra’ ou não-binária, desde que não seja deficiente visual, nem auditivo, nem dislexo.
Uma outra questão é o registro oral. Algumas mudanças propostas atendem à língua escrita mas não passam no crivo da oralidade, simplesmente porque não tem como serem pronunciadas.
Vale também pontuar que é um equívoco forçar a mudança da língua por meios legais. No Brasil, tramitam hoje em dezenove estados, projetos de lei contra ou a favor do uso da linguagem neutra. Acontece que não se muda uma língua pela força da lei. Nem tampouco, se impede sua transformação por decreto.
Mas não pensem os senhores que essa invenção é coisa de ‘idiotes’. Não é. É uma estratégia muito eficiente usar a língua como instrumento de poder e conquista. Para corroborar essa ideia, pode-se destacar dois argumentos:
O primeiro é que a língua é identidade. Um povo é reconhecido por seu idioma, que não é só o quadro de regras gramaticais que norteiam a estrutura da língua, mas também representa sua civilização, sua história, sua cultura e suas crenças. A língua de um povo fala de sua origem. Um exemplo disso está no livro de Neemias:
“Vi também, naqueles dias, que judeus haviam se casado com mulheres asdoditas, amonitas e moabitas. E seus filhos falavam metade das palavras na língua de Asdode ou na língua de seu respectivo povo, mas não sabiam falar a língua dos judeus”. Ne. 13:23,24
O uso do idioma foi fator determinante para que Neemias percebesse que os filhos dos judeus estavam mais próximos das culturas pagãs do que de suas origens judaicas. Diante dessa situação, o governador repreende duramente os judeus; vale à pena conferir o versículo 25 desse mesmo capítulo.
Outro exemplo similar, está no capítulo 12 do livro de Juízes, que narra o conflito entre os gileaditas e os efraimitas.
“Porém os gileaditas tomaram os vaus do Jordão que conduzem a Efraim. E, quando algum fugitivo de Efraim dizia: “Quero passar”, os homens de Gileade lhe perguntavam: “Você é efraimita?” Se respondesse que não, os homens de Gileade lhe diziam: “Então diga ‘Xibolete”. Se ele dizia “Sibolete”, não podendo pronunciar corretamente a palavra, eles o agarravam e matavam nos vaus do Jordão. Assim naquele tempo foram mortos quarenta e dois mil efraimitas”. Jz.12:5,6
Nesse caso, não a língua propriamente, mas uma variante dela, foi o critério usado para identificar o inimigo. Sim, por uma variação linguística, uma distinção fonética da consoante aspirada/sibilada, os efraimitas foram desmascarados e perderam quarenta e dois mil homens, mortos pelos homens de Gileade, sob a liderança de Jefté.
O segundo argumento é o apelo emocional da língua, sobretudo, a língua materna, que por muitas vezes, é a única usada pela maioria dos falantes de uma comunidade.
Exemplo disso é o caso de Eliaquim, Sebna e Joá, em Isaías 36.
“Então Eliaquim, Sebna e Joá disseram a Rabsaqué: — Por favor, fale com estes seus servos em aramaico, porque nós o entendemos. Não fale em hebraico, aos ouvidos do povo que está sobre a muralha.
Mas Rabsaqué lhes respondeu: — Você pensa que o meu senhor me enviou para dizer estas palavras apenas a você e ao seu rei? Ele me enviou para falar também aos homens que estão sentados sobre a muralha e que, junto com vocês, terão de comer o seu próprio excremento e beber a sua própria urina!
Então Rabsaqué se pôs em pé e gritou em hebraico: — Escutem as palavras do grande rei, o rei da Assíria”. Is. 36:11-13
Outro exemplo é o do apóstolo Paulo, em sua conversão, no caminho para Damasco.
E, caindo todos nós por terra, ouvi uma voz que me falava em língua hebraica: “Saulo, Saulo, por que você me persegue? É duro para você ficar dando coices contra os aguilhões!” At. 26:14
Em At.9.4 a Bíblia diz que Saulo ouviu uma voz e caiu por terra; já em At. 22.7,9 Paulo diz que ele ouviu a voz, mas os que estavam com ele não perceberam o sentido dela; na passagem em destaque, do capítulo 26, entendemos o porquê: a voz lhe falou em língua hebraica, fazendo o poliglota Paulo se identificar pessoalmente com seu interlocutor, unindo-se a ele através do idioma e pondo em evidência a origem em comum de ambos: eles eram o mesmo povo.
Movimentos que se servem da língua para alcançar seus objetivos não devem ser subestimados. Se um determinado grupo decide naturalizar suas práticas, seus ideais, sua agenda e seu modo de vida entre o seu povo, a língua é o caminho certo para isso. Então, o que fazer?
Quando se fala em gramática, profissionais de letras preferem a máxima de ‘uso e desuso’ em vez de ‘certo e errado’; há formas que se consagram pelo uso e outras que caem pelo desuso. Para que uma forma não se consagre, a solução é simples: basta não usar.
Que diante do ardor das fogueiras do confronto e das afrontas, o nosso modo de falar denuncie quem nós somos. E não, não negaremos que andamos com Jesus e que somos seus discípulos.