Os quatro primeiros livros do Novo Testamento, conhecidos como Evangelhos, ou seja, Mateus, Marcos, Lucas e João descrevem a vida e obra de nosso Senhor Jesus Cristo. Na verdade, só existe um Evangelho, apresentado sob quatro perspectivas diferentes.
Mateus dedicou-se a escrever aos seus compatriotas judeus, com o objetivo de apresentar Jesus como o Messias prometido a Israel. Marcos, escreveu aos romanos, destacando os aspectos do servo sofredor, do sacrifício substitutivo e redentor. Lucas, escreve a um amigo conhecido como Teófilo, que por sua vez, pode ser aplicável a todas as nações, tendo como objetivo apresentar Jesus como o “Filho do homem”, como o homem perfeito, que se importa com os seres humanos. E, João, escreveu à igreja, destacando os aspectos relevantes da divindade de Cristo, apresentando-o como o Filho de Deus.
Dos quatro livros, apenas dois registram a genealogia de Jesus: Mateus e Lucas. Como já foi mencionado anteriormente, o propósito de cada autor era alcançar um público-alvo distinto e enfatizar um aspecto diferente da vida e obra de Cristo. Mateus julgou necessário destacar a genealogia do Messias, daquele que é da tribo de Judá, daquele é “filho de Davi”, que tem o direito de governar, que cumpre integralmente as profecias bíblicas. Lucas, por sua vez, apresentou a genealogia para destacar a humanidade de Jesus, o homem perfeito, o modelo a ser seguido.
Embora esteja claro que o propósito de cada evangelista era diferente, não é tão evidente o porquê o relato da genealogia de Jesus tem diferenças consideráveis. Neste artigo, não buscaremos dar respostas definitivas, mas apresentar possibilidades plausíveis para explicar as diferenças. Portanto, leia até o final e depois tire suas próprias conclusões. Há diversas hipóteses, contudo destacamos as quatro principais, que buscam explicar a diferença entre a genealogia de Jesus no Evangelho de Mateus e no Evangelho de Lucas.
1. A Genealogia de José e a genealogia de Maria
Na primeira hipótese, Mateus teria citado a linhagem de José para demonstrar que Jesus é o herdeiro legítimo das promessas feitas a Abraão e a Davi. Enquanto Lucas, citou a linhagem de Maria, demonstrando a descendência biológica de Jesus, “que, como homem, era descendente de Davi” (Rm 1.3)[1]. Relembrando os propósitos de cada evangelista, fica fácil defender essa visão. Mateus apresenta Jesus como o Messias prometido a Israel, como aquele que satisfaz as profecias da Antiga Aliança. Lucas, no entanto, apresenta Jesus como o homem perfeito, como o Filho do Homem.
De acordo com essa visão, a parte final da genealogia de Maria registrada em Lucas, em conformidade com os costumes judaicos, seguia a nomenclatura do marido. Dessa forma, quando o texto diz que José era filho de Eli (Lc 3.23), na prática, ele não era filho, mas genro de Eli, o genro era chamado de filho por afinidade. De fato, Eli era pai de Maria, que passou a tratar o genro como se fosse seu filho. O pai biológico de José, se chamava Jacó, conforme registrado por Mateus (Mt 1.16).
Figura 1 – Genealogia de Jesus em Mateus e Lucas
2. Genealogia biológica e genealogia legal
Na segunda hipótese, a diferença entre as genealogias se dá pelo fato de uma ser biológica, isto é, conforme a natureza, e outra, legal, por causa da lei do levirato (Gn 38.6; Dt 25.5-10). De acordo com esta lei, se um homem morresse sem deixar filhos, seu irmão deveria casar-se com a viúva (cunhada), para que o primeiro filho que nascesse recebesse a herança do pai morto. Além disso, o filho que nascesse, seria contado como filho do morto e não do pai biológico.
Para os defensores dessa hipótese, Mateus usou a genealogia biológica, por isso, registrou a expressão: “Jacó gerou a José…”, enquanto Lucas, utilizou a genealogia legal, por isso, registrou a expressão: “… o que era o filho de José, o filho de Eli, o filho de Melqui…”.
3. Ambas eram genealogias de Maria
De acordo com a terceira hipótese, ambas as genealogias registradas por Mateus e Lucas, estão relacionadas à genealogia de Maria. Os defensores desta hipótese afirmam que Jesus é a semente da mulher (Gn 3.15) e não a semente do homem. Como Jesus foi gerado por obra e graça do Espírito Santo, não houve qualquer participação masculina, dispensando a semente masculina (sêmem) no milagre da concepção de Jesus.
Os defensores desta hipótese não apresentam nenhuma argumentação que explique a diferença entre as genealogias de Mateus e Lucas.
4. A Genealogia de Maria e a genealogia de José
Uma variação da primeira hipótese, considera que a genealogia de Mateus refere-se à linhagem de Maria, enquanto que a de Lucas refere-se à de José. Essa hipótese busca encontrar base numa descoberta arqueológica mais recente.
No ano de 2012, o estudioso e pesquisador da Universidade Hebraica de Jerusalém, Nehemia Gordon, encontrou dois dos mais antigos manuscritos do Evangelho de Mateus em Hebraico. Esses documentos, tratam-se de cópias do manuscrito de Shem Tov Ibn Shaprut – Even Bochan, que contém uma variação do texto de Mateus 1.16: “Jacó gerou a José, pai de Maria” ao invés de “Jacó gerou a José, marido de Maria”.
Nesse manuscrito, as palavras יוסף אבי מרים “Yossef avi Miriam“, “José pai de Maria“, resolve um “problema” relacionado à genealogia de Jesus, atribuindo de forma clara a genealogia de Mateus a Maria. Por outro lado, a genealogia de Lucas, passa a representar a genealogia de José, que destaca o aspecto humano, descrevendo a árvore genealógica até até Adão. Observe a figura 2.
Figura 2 – Foto do texto publicado no The Chronological Gospels, de Michael Rood
Além disso, esse manuscrito resolve outro provável conflito. O versículo 17 de Mateus, informa que a genealogia de Jesus foi dividida em três períodos contendo 14 gerações:
De sorte que todas as gerações, desde Abraão até Davi, são catorze gerações; e desde Davi até a deportação para a babilônia, catorze gerações; e desde a deportação para a babilônia até Cristo, catorze gerações (Mateus 1.17).
O número 14 é muito relevante na cultura judaica. Como em hebraico as letras do alfabeto possuem valor numérico, a soma das letras de uma palavra podem revelar significados surpreendentes. Catorze, representa a soma das letras do nome rei Davi. Isso reforça de forma implícita, que Mateus usou todos os meios possíveis para provar que Jesus é o Messias prometido a Israel. Observe a figura 3:
Figura 3 – Representação numérica do nome de Davi
O texto de Mateus, mostra que há catorze gerações de Abraão a Davi, catorze de Davi até o cativeiro babilônico, e catorze do cativeiro até Jesus. No entanto, se você organizar os nomes desses três blocos de catorze, perceberá que a última lista ficará faltando um nome. Observe a tabela 1:
# | 1. Abraão a Davi | 2. Davi ao cativeiro | 3. Cativeiro até Jesus |
1 | Abraão | e o rei Davi gerou a Salomão | Jeconias gerou a Salatiel; |
2 | Abraão gerou a Isaque | e Salomão gerou a Roboão | e Salatiel gerou a Zorobabel; |
3 | e Isaque gerou a Jacó | e Roboão gerou a Abias; | E Zorobabel gerou a Abiúde; |
4 | e Jacó gerou a Judá e a seus irmãos | e Abias gerou a Asa; | e Abiúde gerou a Eliaquim; |
5 | E Judá gerou, de Tamar, a Perez e a Zerá | E Asa gerou a Josafá; | e Eliaquim gerou a Azor; |
6 | e Perez gerou a Esrom | e Josafá gerou a Jorão; | E Azor gerou a Sadoque; |
7 | e Esrom gerou a Arão | e Jorão gerou a Uzias; | e Sadoque gerou a Aquim; |
8 | E Arão gerou a Aminadabe | E Uzias gerou a Jotão; | e Aquim gerou a Eliúde; |
9 | e Aminadabe gerou a Naassom | e Jotão gerou a Acaz; | E Eliúde gerou a Eleazar; |
10 | e Naassom gerou a Salmom | e Acaz gerou a Ezequias; | e Eleazar gerou a Matã; |
11 | E Salmom gerou, de Raabe, a Boaz | E Ezequias gerou a Manassés; | e Matã gerou a Jacó; |
12 | e Boaz gerou de Rute a Obede | e Manassés gerou a Amom; | E Jacó gerou a José, marido de Maria, |
13 | e Obede gerou a Jessé | e Amom gerou a Josias; | da qual nasceu JESUS, que se chama o Cristo. |
14 | E Jessé gerou ao rei Davi; | E Josias gerou a Jeconias |
Tabela 1 – Genealogia em Mateus
Se considerarmos o manuscrito encontrado pelo Dr. Nehemia Gordon, que traz o texto: “Jacó gerou a José, pai de Maria, da qual nasceu Jesus”, Maria passa a ser um nome da lista, completando o número do terceiro bloco de catorze gerações. Adicionalmente, fica evidente que se trata da genealogia de Maria e não de José. Observe agora a tabela 2:
# | 1. Abraão a Davi | 2. Davi ao cativeiro | 3. Cativeiro até Jesus |
1 | Abraão | e o rei Davi gerou a Salomão | Jeconias gerou a Salatiel; |
2 | Abraão gerou a Isaque | e Salomão gerou a Roboão | e Salatiel gerou a Zorobabel; |
3 | e Isaque gerou a Jacó | e Roboão gerou a Abias; | E Zorobabel gerou a Abiúde; |
4 | e Jacó gerou a Judá e a seus irmãos | e Abias gerou a Asa; | e Abiúde gerou a Eliaquim; |
5 | E Judá gerou, de Tamar, a Perez e a Zerá | E Asa gerou a Josafá; | e Eliaquim gerou a Azor; |
6 | e Perez gerou a Esrom | e Josafá gerou a Jorão; | E Azor gerou a Sadoque; |
7 | e Esrom gerou a Arão | e Jorão gerou a Uzias; | e Sadoque gerou a Aquim; |
8 | E Arão gerou a Aminadabe | E Uzias gerou a Jotão; | e Aquim gerou a Eliúde; |
9 | e Aminadabe gerou a Naassom | e Jotão gerou a Acaz; | E Eliúde gerou a Eleazar; |
10 | e Naassom gerou a Salmom | e Acaz gerou a Ezequias; | e Eleazar gerou a Matã; |
11 | E Salmom gerou, de Raabe, a Boaz | E Ezequias gerou a Manassés; | e Matã gerou a Jacó; |
12 | e Boaz gerou de Rute a Obede | e Manassés gerou a Amom; | E Jacó gerou a José, |
13 | e Obede gerou a Jessé | e Amom gerou a Josias; | pai de Maria, |
14 | E Jessé gerou ao rei Davi; | E Josias gerou a Jeconias | da qual nasceu JESUS,que se chama o Cristo. |
Tabela 2 – Genealogia em Mateus de acordo com o manuscrito
Conclusão
Como você observou, há inúmeras hipóteses sobre as diferenças entre os relatos de Mateus e Lucas. Contudo, apesar de nossas limitações para entender completamente, a cada dia que passa, novas evidências arqueológicas, ajudam a fortalecer a fé e provar que não há contradição nos textos bíblicos. A mensagem principal extraída da genealogia de Jesus é que o Verbo encarnou, habitou entre nós e pagou o preço pelo resgate da humanidade.
REFERÊNCIAS
HALLEY, HENRY HAMPTON. Manual Bíblico de Halley. Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Editora Vida, 2001.
[1] HALLEY, HENRY HAMPTON. Manual Bíblico de Halley. São Paulo: Editora Vida, 2001, p. 461.