A crença de que o Sumo Sacerdote entrava no Santo dos Santos com uma corda amarrada ao tornozelo para ser retirado em caso de morte.
A crença de que o Sumo Sacerdote entrava no Santo dos Santos com uma corda amarrada ao tornozelo para ser retirado em caso de morte tornou-se popular ao longo dos séculos. No entanto, essa ideia não encontra respaldo nas Escrituras Hebraicas, no Talmude ou em outros textos judaicos do período do Segundo Templo. Seu primeiro registro aparece no Zohar, obra central da Cabala medieval. O objetivo deste estudo é analisar as fontes dessa tradição e sua difusão na literatura religiosa.
Origem e Análise da Tradição
A suposta justificativa para essa prática seria o perigo de entrar no Santo dos Santos sem estar devidamente purificado, o que poderia resultar na morte do Sumo Sacerdote diante da presença divina. No entanto, o Talmude (Yoma 52b-53a) menciona que o Sumo Sacerdote só entrava no Santo dos Santos em benefícios específicos e com rigorosas prescrições rituais para garantir a sua segurança.
Além disso, no (Yoma 19b), é mencionado que havia um protocolo detalhado para garantir que o Sumo Sacerdote estivesse preparado, e qualquer transgressão nos ritos fosse cuidadosamente evitada. Se houver risco de morte, é de se esperar que essa prática da corda fosse mencionada em algum texto rabínico confiável, ou que não ocorra.
Possível Desenvolvimento Posterior
Alguns estudiosos sugerem que essa crença pode ter surgido da confusão com relatos sobre os sacerdotes que entraram no Santo dos Santos em tempos posteriores ao Segundo Templo ou de interpretações errôneas de textos cabalísticos. A ausência de referências na literatura judaica clássica indica que essa tradição é provavelmente uma lenda medieval ou posterior.
2. O Zohar e as Referências à Corda
O Zohar, uma obra mística do judaísmo, apresenta simbolismos específicos da função do Sumo Sacerdote no Yom Kipur. A menção à corda aparece em dois trechos principais:
2.1. Zohar, Acharei Mot (67a)
Na seção (Acharei Mot (67a)), o texto menciona uma “corrente de ouro” atada à perna do Sumo Sacerdote ao entrar no Santo dos Santos:
“…ele deveria entrar em um lugar mais santo do que todos. Os outros sacerdotes, os levitas e o povo permaneceram ao redor dele em três fileiras e ergueram as mãos sobre ele em oração, e uma corrente de ouro foi amarrada à perna. Ele deu três passos e todos os outros pararam e não o seguiram mais. Ele deu mais três passos e deu a volta em sua casa; mais três e ele fechou os olhos e se ligou ao mundo superior” (ZOHAR, Acharei Mot 67a).
Essa passagem, no entanto, não menciona uma corda comum, mas sim uma corrente de ouro, possivelmente com um significado místico ou alegórico.
2.2. Zohar, Emor (102a)
Outro trecho, encontrado na seção (Emor (102a), Seção 34), Yom Kipur, parágrafo 251, menciona explicitamente uma corda:
“Rav Yitzchak disse: uma corda foi amarrada à perna do Sumo Sacerdote quando ele entrou, para que, caso ele morresse lá, eles poderiam tirá-lo” (ZOHAR, Emor 102a).”
Embora este trecho mencione uma corda, é importante destacar que não há registro desse costume no Talmude, nos Manuscritos do Mar Morto, nos escritos de Flávio Josefo ou em outras fontes judaicas antigas muito menos nas escrituras sagradas (Bíblia).
3. A Ausência de Menção à Corda na Bíblia
A Torá detalha minuciosamente as funções do Sumo Sacerdote no Dia da Expiação (Yom Kipur), especialmente no livro de Levítico, capítulo 16. Nenhum versículo menciona a necessidade de uma corda amarrada ao sacerdote para eventuais remoções em caso de morte. Se esse fosse um procedimento importante, é razoável supor que a Escritura o teria registrado explicitamente.
Em vez disso, a Bíblia enfatiza os rituais de purificação, os sacrifícios e as vestes sagradas do Sumo Sacerdote. (Levítico 16:2) menciona que ele deveria entrar “para que não morra”, sugerindo que sua santidade e preparação eram suficientes para protegê-lo. A ausência de qualquer referência à corda indica que essa tradição não fazia parte do culto original estabelecido na Escritura.
2 Disse, pois, o Senhor a Moisés: Dize a Arão, teu irmão, que não entre no santuário em todo o tempo, para dentro do véu, diante do propiciatório que está sobre a arca, para que não morra; porque eu aparecerei na nuvem sobre o propiciatório; (ACF).
Levítico 16:3-4 declara:
3 Com isto Arão entrará no santuário: com um novilho para expiação do pecado e um carneiro para holocausto.4 Vestirá ele a túnica santa de linho, e terá ceroulas de linho sobre a sua carne, e cingir-se-á com um cinto de linho, e se cobrirá com uma mitra de linho: estas são vestes santas; por isso, banhará a sua carne na água e as vestirá. (ARC).
O texto bíblico enfatiza a pureza e a santidade das vestes do Sumo Sacerdote, mas não menciona qualquer corda ou precaução em caso de morte dentro do Santo dos Santos. Além disso, não há nenhuma evidência textual no Antigo Testamento que indique tal prática.
4. A Interpretação Alegórica da Corda
Diante da ausência de evidências históricas, alguns estudiosos sugerem que a referência à corda no Zohar tem um sentido místico e simbólico, e não literal. O rabino Uri Sherki interpreta a corda como uma metáfora:
“O Kohen Gadol, ao entrar no Kodesh Hakodashim em Yom Kipur, pode ficar tão ligado ao espiritual que ele é capaz de ‘esquecer’ de sair[1]”.
[1] SHERKI, Uri. Interpretações do Zohar . Jerusalém: Machon Meir, 2020.
O Zohar usa a imagem de uma ‘corda’ como um lembrete para o Kohen Gadol de que o povo judeu precisa dele e ele deve ‘recuar’ de volta a este mundo após a extraordinária experiência sobrenatural de Yom Kippur.
5. Problemas Haláchicos Relacionados à Corda
A hipótese do uso de uma corda levanta vários problemas haláchicos |1|:
- Vestuário Extra: A corda poderia ser considerada uma vestimenta adicional, o que invalidaria o serviço do Sumo Sacerdote.
- Obstáculo (Chatzitza): Se colocada sob as roupas, poderia ser um chatzitza[2] (interferência) no traje sacerdotal.
- Uso de Ouro no Yom Kipur: Se a corda fosse uma corrente de ouro, isso poderia contradizer a proibição do uso de ouro nas vestimentas do Sumo Sacerdote no Yom Kipur.
[1] Haláchico é um termo que se refere a leis e práticas da tradição judaica.
[2] Chatzitza é um termo da lei rabínica que se refere a qualquer objeto estranho ou parte do corpo que impeça o contato com a água do mikveh. A presença de uma chatzitza invalida a imersão.
6. O Fio Vermelho
A tradição do fio vermelho está associada ao Templo de Jerusalém e ao ritual de Yom Kipur, conforme relatado no Talmude Babilônico. Essa prática é mencionada no tratado Yoma, especialmente em Yoma 39a e Yoma 67a. De acordo com a narrativa rabínica, durante o Dia da Expiação, um fio de lã tingido de vermelho escarlate foi amarrado na cabeça do bode emissário (o Azazel), e outro pedaço do fio foi colocado na porta do Templo. Acreditava-se que, se Deus aceitasse os sacrifícios oferecidos, o fio milagrosamente se tornaria branco, simbolizando o perdão dos pecados de Israel, conforme a passagem de Isaías 1:18:
“Vinde então, e arguímos, diz o Senhor; ainda que os vossos pecados sejam como a escarlate, eles se tornarão brancos como a neve.”
Entretanto, a ausência de menções a uma prática relacionada à corda do Sumo Sacerdote durante o mesmo período no Talmude levanta a hipótese de que essa tradição do fio vermelho seja uma adição tardia, sem fazer parte da tradição original do Templo. Essa ausência de referência ao fio no contexto de outros rituais e práticas do Sumô Sacerdote reforça a ideia de que o uso do fio vermelho pode ter surgido posteriormente na tradição rabínica, especificamente relacionado ao rito de Yom Kipur e ao simbolismo do perdão divino.
Yoma 39b:
“Durante os quarenta anos antes da destruição do Templo, a espécie ‘Para o Senhor’ não vinha mais na mão direita do Sumo Sacerdote, o fio escarlate não se tornou branco, a chama do candelabro ocidental não permanecia acesa, e as portas do Templo se abriram sozinhas. Até que Rabban Yohanan ben Zakkai as repreendeu e disse: ‘Ó Templo, por que te assusta a ti mesmo? Sei que a tua destruição está próxima, pois está escrito: Eis que te assustarei este Templo, e não o edificarei novamente’ (Zacarias 11:1).”
Esse trecho sugere que quarenta anos antes da destruição do Segundo Templo (por volta do ano 30 dC), os sinais milagrosos relacionados ao Yom Kipur deixaram de ocorrer, incluindo a mudança da cor do fio escarlate.
Yoma 67ª:
“E amarraram um fio de lã tingido de vermelho na cabeça do bode emissário. Em seguida, o sacerdote-chefe o invejoso com um homem designado ao deserto. Eles também amarraram outro fio de lã vermelha à entrada do Ulam (vestíbulo do Templo). Se o fio se tornasse branco, os israelenses se regozijavam, pois sabiam que receberam expiação; se permanecesse vermelho, ficaram tristes e envergonhados.”
Esse texto descreve o traje de amarrar um fio escarlate na cabeça do bode emissário e outro na entrada do Templo, que serve como um sinal visível da acessível do sacrifício e da expiação dos pecados do povo de Israel.
Esses relatos indicam que a tradição do fio vermelho que se tornava branco era vista como um sinal divino da acessibilidade do sacrifício de Yom Kipur. Contudo, sua interrupção foi interpretada pelos rabinos como uma pressão de destruição do Templo e de mudança no relacionamento de Deus com Israel.
7. Conclusão
A ideia de que o Sumo Sacerdote entrava no Santo dos Santos com uma corda amarrada ao corpo não possui base nas Escrituras ou nos textos judaicos tradicionais. Seu primeiro registro aparece no Zohar, um texto místico da Idade Média, que pode estar usando essa imagem de forma alegórica. A falta de menção dessa prática em fontes rabínicas e históricas anteriores reforça a tese de que se trata de uma lenda tardia.
Dessa forma, a narrativa da corda deve ser compreendida no contexto do misticismo judaico e não como uma prática real no Templo de Jerusalém.
7.1 Aqui está uma tabela organizada com as principais indicações bíblicas e judaicas relacionadas ao Sumo Sacerdote no Santo dos Santos, incluindo a questão das vestes e da suposta corda:
Texto / Referência | Conteúdo / Relevância | |
Bíblia – Torá | Levítico 16:4 | O Sumo Sacerdote deveria vestir roupas simples de linho ao entrar no Santo dos Santos no Dia da Expiação. |
Bíblia – Torá | Levítico 16:29-34 | Reafirma o ritual do Yom Kipur e o papel do Sumo Sacerdote na expiação dos pecados de Israel. |
Bíblia – Profetas | Isaías 1:18 | “Ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve” – relacionado ao fio vermelho no Templo. |
Talmude Babilônico | Yoma 39a-39b | O fio vermelho deixou o Templo se tornou branco quando os sacrifícios foram aceitos, mas cessou de ocorrer 40 anos antes da destruição do Templo. |
Talmude Babilônico | Yoma 67a | Descreve o ritual do bode emissário (Azazel) e o uso do fio vermelho amarrado nele e na porta do Templo. |
Talmude Babilônico | Yoma 35a-37b | Detalha que o Sumo Sacerdote usava roupas simples de linho e não as vestes ornamentadas ao entrar no Santo dos Santos. |
Talmude Babilônico | Yoma 52b-53a | Explica que o Sumo Sacerdote entrou no Santo dos Santos com extrema cautela, mas não menciona qualquer corda amarrada ao seu pé. |
Talmude Babilônico | Yoma 19b | Relata o preparo rigoroso do Sacerdote de Sumô antes do Yom Kipur, garantindo que ele fosse puro e preparado para o ritual. |
Midrash | Vayikrá Rabbah 21:12 | Discorre sobre a santidade do Santo dos Santos, sem menção ao uso de cordas. |
Zohar | Zohar II, 67b | Refere-se à presença intensa divina no Santo dos Santos e ao temor que os sacerdotes tinham ao entrar, mas não menciona corda amarrada ao Sumo Sacerdote. |
Zohar | Zohar III, 102a | Menciona a pureza necessária para se aproximar da presença divina, mas não faz referência a uma corda. |
Zohar | Zohar, Acharei Mot (67a) | Menciona uma “corrente de ouro” amarrada à perna do Sumô Sacerdote, mas não uma corda comum. O significado pode ser místico ou alegórico. |
Zohar | Zohar, Emor (102a) | Declara que “uma corda foi amarrada à perna do Sumô Sacerdote” para retirá-lo caso morrasse. No entanto, essa prática não é confirmada por nenhuma outra fonte judaica antiga como o Talmude, os Manuscritos do Mar Morto ou Flávio Josefo. |
Obras Rabínicas | Comentários de Rashi | Rashi nunca menciona a prática da corda, reforçando sua ausência na tradição rabínica clássica. |
A tabela destaca que a tradição da corda não encontra respaldo nas principais fontes judaicas, reforçando que essa ideia é uma crença tardia e sem fundamento histórico nos textos canônicos.
Referências
- Flávio José. Antiguidades Judaicas. Tradução de William Whiston. São Paulo: Editora XYZ, 2020.
- FILON DE ALEXANDRIA. Sobre as Leis Especiais. Tradução de John M. Dillon. Oxford: Clarendon Press, 1993.
- MAIMÔNIDES (RAMBAM). Mishnê Torá. Tradução e comentário de Yitzhak Blau. Jerusalém: Mossad Harav Kook, 2008.
- SHERKI, Uri. Interpretações do Zohar. Jerusalém: Machon Meir, 2020.
- TALMUDE BABILÔNICO. Tratado Yoma. Tradução e notas de Adin Steinsaltz. Nova York: Koren Publishers, 2015.
- ZOHAR. Acharei Mot (67a); Emor (102a). Tradução de Daniel C. Matt. Stanford: Stanford University Press, 2004.
- KOLATCH, Alfred J. Op. Cit. (abreviação de “Opere Citato”). pág. 305.
- ______. Op. Cit. pág. 164.
- ELWELL, Walter A. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. Edição traduzida por Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 221.
- BÍBLIA. Livro de Levítico. Emor, capítulos XXI, 1 – XXIV, 23.
- · Bíblia de Jerusalém
SAGRADA ESCRITURA. Levítico 16:2. In: Bíblia de Jerusalém. 1.ed. São Paulo: Paulus, 2002. - · Almeida – ARC (Almeida Revista e Corrigida)
ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada: O Antigo e o Novo Testamento. Levítico 16:2. 2. ed. Rev. e atual. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010. - · Almeida – ARA (Almeida Revista e Atualizada)
ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Levítico 16:2. 3.ed. Rev. e atual. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 2007. - · Almeida – AFC (Almeida Fiel e Corrigida)
ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada: O Antigo e o Novo Testamento. Levítico 16:2. São Paulo: Editora Fiel, 2013. - · Peregrino – TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia)
SAGRADA ESCRITURA. Levítico 16:2. In: Tradução Ecumênica da Bíblia. São Paulo: Edições Loyola, 2003. - · Nova Tradução na Linguagem de Hoje – NTHL
SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. Levítico 16:2. In: Nova Tradução na Linguagem de Hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2002.