“A leitura da Bíblia requer um recursivo esforço intelectual, em que este é um requisito indissociável da prática cristã, para que se revele o Deus Pessoal. O fato de que as Escrituras tenham sido organizadas e ordenadas, não exime o esforço cognitivo do estudioso e praticante da Palavra. As experiências e encontros com Deus necessitam de uma correspondência formal entre o cristão e o Divino”.
André Batalhão
“Porque a sabedoria deste mundo não é mais do que loucura perante Deus. Como está escrito: Deus usa a própria habilidade intelectual da criatura para a levar a reconhecer a sua própria fraqueza.”
(1 Coríntios 3.19 OL)
Parte dos cristãos acha que não devem se comprometer em seguir o caminho de uma vida intelectual. Confesso que isso me deixa preocupado, pois a leitura da Bíblia, que é uma obrigação primária do cristão, requer um considerável esforço intelectual. Isso não exclui a importância dos dons espirituais, ao contrário, apenas reforça a manifestação e necessidade do entendimento dos tais. A falsa sensação de suficiência espiritual, sem um esforço de aprendizagem contínuo, pode afundar o terreno da fé dos crentes.
Portanto, cada um deve ser e proporcionar a si, e ao Reino, o melhor e o máximo. Uma desvantagem, ou fragilidade, da busca pela vida intelectual, é a sua dependência da oportunidade. A oportunidade e o acesso a um conhecimento de qualidade não são iguais para todos. Precisamos oferecer ambientes e possibilidades para que os cristãos acessem e produzam conhecimento bíblico e teológico, não se ajustando e apoiando unicamente ao seu valor espiritual intrínseco. A harmonia entre a vida intelectual e os dons espirituais conduzem-nos pela rota da sabedoria.
O afastamento do ambiente acadêmico de algumas denominações evangélicas tem gerado uma defasagem significativa de conhecimento bíblico e teológico. A superocupação deste ambiente por algumas específicas denominações enfraquece o debate teológico interdenominacional entre vertentes doutrinais díspares. Cabe a todas as denominações ocupar as cadeiras de professores e alunos do ambiente acadêmico, para formar material humano qualificado e capaz, a fim de fomentar um debate teológico ampliado, bem como estabelecer uma legitimação do seu próprio conteúdo produzido. Resumindo: precisamos aprender a doutrina que praticamos e aprender com as diferenças existentes entre eixos teológicos distintos.
Neste senso, também temos que nos atentar para a soberba e para a natureza do homem, que é decadente e humanista (Isaías 14.11). No caminho da vida intelectual podemos nos achar autossuficientes e andar de mãos dadas com a vaidade. Isso apodrece as intenções do coração de um verdadeiro cristão, levando-o para um caminho contrário ao da Eternidade. Isso reforça o antiintelectualismo que afligiu, e ainda aflige, muitas igrejas evangélicas. Mesmo diante do nível de conhecimento individual de cada um, devemos ter a ciência de que precisamos nos humilhar todos dias para buscar a sabedoria em Cristo Jesus (Cl 2.3).
Há diferença entre o intelectual mais ativo e o intelectual mais recluso, em que, o último, fica mais cercado dos livros e de pessoas do seu meio, como, por exemplo, os irmãos de sua congregação. Já o intelectual mais ativo, utiliza-se de modelos e sistemas de transferência e recepção de conhecimento além da sua célula social.
Todavia, a atividade do intelectual mais ativo não resultará, necessariamente, no proveito maior de sua experiência em comparação com o conhecimento não-verbal ou mudo, acessado pelo menos ativo. A diferença entre uma vida intelectual mais ativa e uma vida mais pessoal nem sempre está aplainada por uma opção própria ou está balizada por um ato vocacional. Muitas vezes, isso é algo imposto pela vida e realidade do indivíduo, algo de caráter coercitivo. Muitos dos mais ativos buscadores de conhecimento gostariam de levar uma vida mais calma, solavancada pelos seus próprios pensamentos e percepções, sem interferência externa ou necessidade abrupta de uma competição desenfreada entre seus pares.
A percepção e comunicação não-verbalizada desenvolveu-se a partir de estudos de Milton Erickson nos anos 1950 e 1960 (ERICKSON; ZEIG, 2000). Essa abordagem refletiu diretamente em toda teoria do conhecimento da modernidade, permitindo a diferenciação entre a percepção sensível e a percepção do “eu interior” (verbum mentis). A diferença entre as duas é a descontinuidade da percepção do “eu interior”, que se revela em partes e não representa o seu conhecimento total, podendo ser o eco de algo recebido em momentos pretéritos.
A maneira como lidamos com nossos dilemas diários pode nos ajudar a identificar de onde são oriundos nossos discursos de autodefesa e acusação, até mesmo por quais sentimentos o nosso coração transita nesses momentos. Isso pode nos ajudar a entender a nossa práxis espiritual, em que aspectos intelectuais e emocionais influenciam diretamente a construção e manutenção da nossa integridade espiritual.
Por sua vez, na vida cristã, a dimensão espiritual influencia nosso modus vivendi e as conclusões em que chegamos sobre os assuntos que permeiam a nossa existência. Essa influência pode ser anterior ao conhecimento apreendido (ab ovo), ou, percebida e interpretada por meio da lente criteriosa da Palavra de Deus, enquadrando os fatos experienciais sob a ótica e ângulo do conhecimento do Evangelho. Com isso, podemos dizer que o conhecimento humano sobre Deus advém, não estritamente, de pensamentos puros somente, mas, também, de fundamentos baseados em nossas experiências com o Divino (como uma paralaxe). De uma maneira ou de outra, a constatação da revelação divina entrepassa pelo centrismo das Escrituras Sagradas. Se buscarmos sedimentar nossas experiências sobre a Palavra de Deus, nossos recursos de construção e sedimentação mental e espiritual estarão sobre este terreno (Mateus 7.24).
Isso interfere na situação real em que vivemos, bem como na sequência de pensamentos do indivíduo, que contribuem, a partir de uma organização lógica, em conhecimento. Nossos pensamentos podem influenciar nossa saúde física e espiritual. A sequência de pensamentos parece estar desconectada da condição física, mas não está (como por exemplo, o processo de adoecimento das doenças psicossomáticas). Pesquisas têm mostrado que a espiritualidade e a religião influenciam a condição de saúde e bem-estar das pessoas (LITALIEN; ATARI; OBASI, 2021). Pensamentos distantes do Evangelho também podem contribuir para o adoecimento espiritual (LU et al., 2021; CONSOLI et al., 2018).
Os nossos pensamentos podem mudar e orientar nossas ações; entretanto, as ações provenientes de tais pensamentos precisam estar mergulhadas nas intenções corretas do coração (Salmo 51.10; Provérbios 4.23). O pensamento de René Descartes baseia-se no “cogito, ergo sum”, ou “penso, logo existo”. Ou seja, o homem é aquilo que pensa. Já Agostinho dizia que o homem é aquilo que ama; ele é aquilo que está no seu coração. Considerando os argumentos destes autores, ofereço uma sugestão: mude o seu coração para mudar os seus pensamentos! Para tanto, precisamos estar atentos a que tipo de informação estamos expostos, e o quê, como e por quê estamos comunicando ou reverberando nossas percepções.
Paralelo a isso, esbarramos na abordagem de Narciso Irala, que trata das faculdades emissivas e receptivas (IRALA, 1982). As faculdades emissivas versam sobre as capacidades construtivas, com enfoque na continuidade e concentração. Isso está associado ao processo criativo, de acordo com a sua própria decisão e vontade. Já as faculdades receptivas tratam da recepção e processamento das informações sensoriais. Isso contribui para a formação de conceitos e novos conhecimentos por meio de associações, por exemplo. Nossa vida intelectual depende do que recebemos e do que emitimos. Uma coisa está relacionada à outra.
Para gerarmos um conhecimento profundo sobre Deus a partir do conhecimento não-verbal (leitura da Bíblia, contato histórico-literário, etc.), por exemplo, precisamos utilizar a comunicação verbal por meio da evocação e classificação das nossas percepções, oriundas das nossas experiências pessoais com o Espírito Santo. Diferente do que alguns podem pensar, o conhecimento não-verbal não é apenas um ajuntamento de meras descrições textuais; aqui, os dons espirituais manifestos na Igreja Primitiva, são fatores relevantes para a apreensão e geração de um conhecimento bíblico fidedigno e comprovável (1 João 5.10).
A busca pela intelecção por meio de estudo bíblico e de experiências pessoais com Deus é um dos alicerces básicos para uma vida cristã plena e saudável. É preciso conhecer o Deus que servimos, para reconhecermos verdadeiramente quem Ele é. Porém, precisamos ir além dos muros das igrejas e buscar ferramentas metodológicas e pedagógicas que melhorem nossa capacidade cognitiva, fortalecendo nossas estratégias de aprendizagem.
Ser um intelectual na Palavra de Deus não depende meramente de como você conhece as Escrituras; depende, também, de quão profundo você é na substância e essência do texto bíblico, e qual o significado você extrai para sua vida.
Referências
CONSOLI, M. L. M.; UNZUETA, E. G.; DELUCIO, K.; LLAMAS, J. What shade of spirituality? Exploring spirituality, religiosity, meaning making, and thriving among Latina/o undergraduates. Counseling and Values, v.63, p.232–253, 2018.
ERICKSON, E. M.; ZEIG, J. K. The letters of Milton H. Erickson. Phoenix: Zeig, Tucker & Theisen, Incorporated, 393p., 2000.
IRALA, N. Control cerebral y emocional. Bilbao: Editorial Sal Terrae, 1982. 276p.
LITALIEN, M.; ATARI, D. O.; OBASI, I. The influence of religiosity and spirituality on health in Canada: A systematic literature review. Journal of Religion and Health, 2021.
LU, J.; POTTS, C.A.; ALLEN, R.S.; LEWIS, P. D.; JOHNSON, K. A. AN Exploration of Spiritual Well-being Among Homeless People: A Hierarchical Regression Analysis. Journal of Religion and Health, 2021.