Qual é a primeira imagem que o nosso cérebro nos revela quando mencionamos a
palavra “carnaval”?
A resposta pode não ser única, mas, certamente, está circunscrita a um restrito
conjunto fantasioso, composto por ilustrações mentais, tais como blocos de rua, foliões
agitados, confetes, serpentinas, fantasias, escolas de samba e congêneres.
Dito desta forma, pode até parecer que se trata de mais uma festa popular brasileira, de
alcance nacional, capilarizada em meandros bem democráticos, capazes de alcançar as
populações de todos os estratos sociais. Seria uma espécie de “simpático lenitivo” para uma
realidade injusta e esmagadora, ou um “louco alívio” para uma existência tão sisuda.
Contudo, acreditamos que reflexões um pouco mais aprofundadas se fazem
necessárias. Isto digo não somente porque o carnaval brasileiro é uma festa de envergaduras
continentais ou porque traga a reboque aspectos socioculturais e históricos relevantes. Isto
afirmo porque esta festa e o seu período singular atingem frontalmente certos aspectos
basilares de nossa filosofia teológica, com direito a repercussões críticas que nos obrigam a
claros posicionamentos.
Por óbvio, não se trata, aqui, do aspecto fantasioso da festa. A fantasia evocada neste
período convida crianças de todas as idades a sonharem com chuvas de confetes e
musiquinhas tamborilantes que marcaram épocas e vidas. A fantasia é pueril e possui ares
inocentes. A fantasia é, estrategicamente, sobreposta como um agradável lençol colorido, apto
a cobrir e benignamente caracterizar o magno festival, dando-lhe ares familiares e de
naturalidade salutar. Neste sentido, vemos pessoas de bem e famílias inteiras imersas neste
clima alegre e descontraído, aliviando suas tensões em meio às ruas, praias, matinês, etc.
Constroem-se, assim, espaços coloridos, felizes e divertidos, ainda que transitórios e
perigosamente ilusórios.
Também não pretendo aqui trazer pormenores etimológicos sobre o nome da festa ou
detalhamentos acerca de suas antigas origens indo-europeias ou pormenores acerca de suas
correlações com bases orgiásticas primevas ou festins celebrativos primaveris, e de como
estes festejos foram absorvidos pelo cristianismo medieval. Proponho-me, aqui, desenvolver
reflexões mais atinentes aos significados recônditos de uma festa que se propõe ofertar, num
apertado período de poucos dias, uma proposta permissiva de imersão em um mundo
imaginário no qual, neste breve lapso, é permitido fugir-se da identidade e da realidade.
Os festejos ditos “momescos” são caracterizados pela permissividade, em maiores ou
menores graus. A própria figura do rei Momo, historicamente, evoca isto. Na mitologia grega,
Momo é tido como festivamente zombeteiro e debochadamente irreverente. Ora, a
permissividade conduz, primariamente, à irreverência, e esta, necessariamente, aos excessos.
Não parece ser à toa que esta “festa da alegria” traga, em sua essência, uma verdadeira
inversão dos valores sobre os quais a sociedade, em todos os demais dias do ano, está (ou,
pelo menos, busca-se estar) assentada e firmada. A entrega simbólica das “chaves” das
cidades a esta figura representativa deixa, nas mãos do povo e do seu rico imaginário, a
condição de gerir-se autonomamente, conduzindo-se ao sabor dos seus bel-prazeres.
Pode-se dizer que seja uma das tentativas temporais menos felizes de se tentar “burlar”, mesmo que
provisória e fantasiosamente, a realidade fática caótica e estressante (confessável ou não) da
maioria dos foliões. Talvez seja precisamente aí que more o perigo, muito embora o carnaval
mostre-se como uma proposta saturada de boas motivações, e abarrotada de defensores. Neste
sentido, gostaríamos de propor algumas reflexões e refutações pertinentes à temática
carnavalesca. Seguem:
1-O carnaval propõe uma fuga da realidade dura e insensível às dores sociais
humanas.
Refuta-se. A identidade e a realidade humanas são pilares centrais da sanidade
individual e coletiva das populações. Sua preservação está no cerne da estabilidade socio-
político-cultural das comunidades ditas civilizadas. Por mais duras e infelizes que sejam, é
imperioso que a humanidade as encare de frente e, a partir de suas reais leituras, construam
soluções sensatas com vias a resoluções definitivas para suas crises e seus problemas.
Os problemas da realidade não são vencidos com ilusões. Homens e mulheres
verdadeiramente sábios não varrem suas dificuldades para debaixo de tapetes coloridos e
temporariamente pintados com as cores de uma alegria disfarçada. As histórias dos que
realmente venceram não são caracterizadas por fugas a esconderijos multicores. Cristãos
convictos possuem, dentro de si, arraigados em seus princípios de vida, formulações
escriturísticas suficientemente diretivas e protetivas, frutos do amor do Único Deus,
verdadeiramente bom. O Deus Filho, que a ninguém ilude, diz abertamente, em João 16.33:
“Tenho-vos dito isto para que me mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tendes bom
ânimo, eu venci o mundo”. Ato contínuo, exsurge o comovente texto do apóstolo Paulo,
ensinando pela experiência real de sua vida, que as dores não devem ser escamoteadas, mas
transformadas em testemunho e certezas de fé, como está escrito em Filipenses, 4.12: “Sei
estar abatido e sei também ter abundância; em toda a maneira e em todas as coisas estou
instruído, tanto a ter fartura, como a ter fome; tanto a ter abundância, como a padecer
necessidade”. De igual forma, o relato bíblico de Mateus 5.45 não nos mostra festivas
redomas protetoras ou alegres bolhas de proteção gratuitas a seletos privilegiados. Mostra, ao
contrário, uma realidade biblicamente equânime, ao afirmar que o sol nasce para todos e a
chuva que irriga a terra cai sobre todos: “Porque Ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e
derrama chuva sobre justos e injustos”. O que maus e bons farão com o sol e com a chuva
ofertados por Deus é o que determinará o presente e o futuro das histórias de vida. Fugir a
estas realidades nem é sensato e tampouco eficaz.
2-O carnaval propõe que as pessoas têm o direito à liberdade da irreverência
Refuta-se. Reverência significa, literalmente, respeito íntimo por alguém ou por
alguma coisa a quem se repute virtude e honra. Em oposição, irreverência pode significar,
desde uma simples desatenção, ao mais enfático desrespeito a alguém ou a algo. Pergunta-se:
a irreverência evocada nos festejos carnavalescos diz respeito, primariamente, à saudável
extroversão e ao jeito ameno de lidar com as múltiplas situações da vida? Se assim fosse, nada
haveria de incorreção nisto. Contudo, não é esta a realidade concreta que se apresenta. Vemos,
nos períodos carnavalescos, pessoas excedendo-se irresponsavelmente e adentrando,
irreverentemente, em áreas estranhas ao seu caráter cotidiano. Irrigados pelos delírios
permissivos, vemos perfis serem transformados e atitudes desabonadoras falarem mais
eloquentemente do que meses de dissimulados discursos.
Vemos o fraquejo moral conduzir pessoas a enfeitarem-se de cores inusuais e portas serem abertas ou escancaradas para escândalos públicos ou íntimos.
Não temos aqui pretensas ingenuidades. Os problemas da identidade não são vencidos
com máscaras, mas com o confronto direto e sincero. Cada um é o que é hoje. O que somos
no presente é o construto resultante de processos passados de semeaduras realizadas por nós
mesmos ou por outras pessoas que, diretamente ou indiretamente, contribuíram para escrever
as nossas histórias. Portanto, conceitos de certo e errado simplesmente não se perdem em
relativismos forçosos. Algo não passou a ser certo ou errado somente porque um grupo,
majoritário ou não, assim pensou e estabeleceu.
O próprio conceito de liberdade está entranhavelmente ligado a estes aspectos. Pela perspectiva bíblica, somos livres até mesmo para nos deixarmos aprisionar. Mas não somos livres para mentirmos para nós mesmos.
O apóstolo Paulo, em uma de suas defesas ministeriais, fez uma das declarações mais
simples em sua forma, mas de grande profundidade teológica e filosófica. Ele diz, em 1
Coríntios 15.10a: “Pela Graça de Deus, sou o que sou”. Se ser irreverente no sentido
momesco significa fazer opções pelo erro e pela oposição aos princípios de Deus e de Sua
Palavra, então que se use de franqueza e sinceridade em nomear tal irreverência com o nome
de “pecado”. E viva-se com isto.
3-O carnaval propõe que as pessoas têm o direito de extravasarem as suas
tensões
Refuta-se. No Antigo Testamento, num dos momentos mais cruciais do povo de Deus,
durante a travessia do deserto, Israel resolveu abafar e encobrir seus problemas e ansiedades
com a maquiagem da libertinagem festiva. É o episódio conhecido como “o bezerro de ouro”,
que se lê no livro de Deuteronômio, no capítulo 32. Vemos que grande parte das pessoas
resolveu esquecer o seu Deus e substituí-lo, escandalosamente, por outra proposta afeita a
comilanças, bebedeiras, danças, festas e nudez. Ali, entendemos que gerações inteiras foram
postas em risco.
Tivesse Israel dado vazão àquelas posturas luxuriosas e seguido pelos
caminhos da concupiscência, de há muito teria sido varrido do mapa. Teria entrado no grupo
dos povos antigos que já desapareceram da história. Não fosse a intercessão de Moisés e a
repreensão misericordiosa de Deus, Israel não seria hoje quem é, uma nação milenar, berço do
Cristianismo bíblico. Infere-se no texto que as reações divina e mosaica foram imediatas.
Perceba-se claramente que não foi gerado nenhum “interstício” temporal de três, quatro dias,
ou de uma semana, para que o povo pudesse “aliviar-se” de suas tensões pela via do pecado.
Ao contrário, a reação foi imediata e forte.
Compreendemos, portanto que Deus não relativiza os seus princípios nem flexibiliza com a permissividade, pois esta conduz à perdição. Tensões são estados mentais onde desagradáveis preocupações assenhoreiam-se do ser humano. Em certa medida, são benéficos fisiologicamente. Contudo, se prolongados, os
estados de tensão podem levar, inclusive ao desenvolvimento de doenças de origem psicossomática e, com o tempo, caso persistam, podem evoluir para condições patológicas graves.
Na caminhada cristã, assomam-se os testemunhos de irmãos que experimentaram
estados de estresse contínuo, mas que conseguiram vencê-los sem a necessidade de ceder a
“válvulas de escape” que estejam distanciadas dos princípios de Deus. Muito pelo contrário.
Neste sentido, a Palavra de Deus é plúrima em passagens corroborantes.
É o caso, por exemplo, do dramático testemunho do apóstolo Paulo, em 2 Coríntios 1.8, que diz
claramente: “Porque não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio na
Ásia, pois que fomos sobremaneira agravados mais do que podíamos suportar, de modo tal
que até da vida desesperamos”. Contudo, muito diferentemente de uma postura permissiva e
entreguista, Paulo expõe a forma maravilhosa como foi ajudado pelo Senhor, quando diz, nos
versículos seguintes: “Mas já em nós mesmos tínhamos a sentença de morte, para que não
confiássemos em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos; o qual nos livrou de tão grande
morte, e livra; em quem esperamos que também nos livrará ainda”.
Na mesma carta, mais adiante (2Coríntios 7.5), o apóstolo reitera suas adversidades e seus infortúnios, ao falar que “a nossa carne não teve repouso algum; antes, em tudo fomos atribulados: por fora, combates;
por dentro, temores”. Entretanto, a direção que recebe do Espírito Santo, em santa inspiração,
é a de dirigir aos crentes palavras de exortação a ainda maior santidade (2Coríntios 7.1):
“Ora, amados, pois que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e
do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus”.
Neste sentido, temos o magno e incomparável exemplo de nosso Senhor Jesus que, no
auge de sua aflição humana e no momento mais decisivo de todo o seu ministério salvífico,
no Jardim das Oliveiras, vivenciou o nível de tensão mais elevado que um ser humano poderia
experimentar, que foi o fenômeno da hematidrose, originado de causas físicas e espirituais. O
texto de Lucas 22.42-44 é comovente em extremo quando traz a pungente e penosa oração do
nosso Salvador, ao expressar-se ao Pai: “Pai, se queres, passa de mim este cálice; todavia, não
se faça a minha vontade, mas a tua”.
Homens e mulheres possuem o direito inato ao alívio de suas tensões. O próprio Deus,
em Sua Palavra, oferece muitos refúgios reais e eficazes. Graciosamente, oferece-nos o
“Esconderijo do Altíssimo”, “A Sombra do Onipotente”, “O jardim secreto” da intimidade
com Deus, o “refúgio da oração”, o apoio dos amigos “mais chegados que irmãos”, a
segurança no amor de Deus, a limpeza pela Palavra, o alívio da Sua presença para as almas
sobrecarregadas, a real e bendita esperança, a fidelidade das Suas Promessas, a Sabedoria do
Alto, a Maravilhosa Graça.
Nenhuma realidade será alterada mediante escapes. Definitivamente, o carnaval não é
meio para alívio de tensões. Ao contrário, corre-se o elevado risco de gerar outras ainda
maiores. A tentação do folguedo em meio à prova não passa de simulação mental de fuga e
estéril imediatismo. Quão diferente é a Palavra de Deus quando diz, em 1 Coríntios 10.13
que “Não veio sobre vós tentação, senão humana; mas fiel é Deus, que não vos deixará tentar
acima do que podeis, antes com a tentação dará também o escape, para que o possais
suportar”.
4-O Carnaval é uma festa popular democrática, onde todos possuem o mesmo e igual direito de divertirem-se e serem felizes.
Refuta-se. O verdadeiro pensamento democrático é aquele que tende a considerar o
declínio das diferenças entre os seres humanos, mediante posturas de mérito e de oportunidades que lhes sejam equânimes, permanentemente. Não é democrática uma ocasião festiva que maquia, temporariamente, tristes realidades. Não é justa a criação de um lapso temporal onde as diferenças são disfarçadamente removidas. Não se constroem verdadeiras políticas sociais com aparências de alegria que perduram uns poucos dias. O que se tem após é o peso da realidade fática da vida, com suas cobranças, obrigações e exigências. Pior. Parece até perverso o oferecimento do circo a despossuídos aos quais lhes falta o básico.
Aqui, não estou me referindo somente aos pobres de bens materiais, muito embora sejam majoritários.
Há também outras pobrezas que são empurradas para “debaixo do tapete” nestas ocasiões
carnavalescas. Pobrezas morais e espirituais são alimentadas por promiscuidades que ganham
vulto em tempos de transigência com o pecado. Concupiscências e desenfreamentos brotam e
enxameiam estes momentos de libertinagem consentida, atrapalhando vidas e futuros.
Multiplicam-se as histórias de adultérios, fornicações, separações, gravidezes indesejadas,
abortos, bebedeiras, recaídas de todo o tipo, licenciosidades das mais esdrúxulas, gastos
excessivos, descontroles dos mais danosos, acidentes e vítimas anunciados.
Como seria diferente? A Bíblia nos assegura, em 1 João 5.19 que “o mundo jaz no
maligno”. Ora, o Evangelho somente está encoberto para os que se perdem, posto que fizeram
a opção de perderem-se em cegueiras demoníacas, como está escrito em 2 Coríntios 4.4: “o
deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos para que não lhes resplandeça a luz do
Evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus”.
Sem freios, não existem controles. Sem referências na caminhada, qualquer viajante se
perde. Sem luz, o tropeço e a queda são inevitáveis. Sem o temor de Deus, tudo se torna
ameaçadoramente permitido. Qual o proveito de um tempo de minguadas alegrias e
esquálidos alívios, se tudo não passa de representações multicores de nossas próprias
carências? Pior. Estes déficits não serão supridos ao fim do período, mas até podem ser
potencializados. Identidades não são voláteis. A democracia não se constrói em bases
fugazes. De igual modo, as verdadeiras alegrias que servem ao ser humano não são fugazes.
Não se constrói verdadeira democracia social sem democracia político-econômica, todas
pautadas em uma ordem moral que promova o bem e a paz para todos.
As realizações de Deus, pelo contrário, não se baseiam em transitoriedades.
É um engodo pensar que um, dois ou três dias de folia podem compensar danos
perenes e prejuízos irreversíveis. A Bíblia expõe a natureza das trevas. Em 2 Coríntios 2.11, é
dito que não devemos ignorar as suas armadilhas. Em Apocalipse 12.9,10, o maligno é
chamado de sedutor e acusador. Suas táticas parecem variar entre estes dois pilares: a sedução
(tentação) e a acusação perturbadora ou a cegueira ignorante. Atrai para depois condenar. É o
jogo da perfídia, a trama traiçoeira que falseia suas reais intenções com objetivo de enganar os
incautos.
Deus, ao criar o homem, muniu-o de um código moral inato, proveniente da própria
natureza do Altíssimo. Mesmo a queda no Éden não conseguiu remover de todo a percepção
acerca do certo e do errado.
Hipócrita é a hipocrisia que se esconde em afirmações levianas e gerais, trazendo uma
festa degradante à condição de agente acusatório e parâmetro para o desmerecimento das
pautas morais. A decadência, por mais elegante que se proponha, será sempre decadência para
os que caem, mas jamais para os que se elevam pelas luzes do Espírito.
Concluo desejando que o verdadeiro contentamento, proveniente do Verdadeiro e
Único Deus, possa ser alcançado pela nossa sociedade brasileira. Que o Brasil cesse,
finalmente, de esperar, infeliz e avidamente, por uns poucos e fraudulentos dias para dizer que
tem direito a uma liberdade irreverente, à fuga da realidade e ao extravasamento irreal de suas
tensões. Que o amor de Cristo verdadeiramente os faça felizes. Que a Maravilhosa Graça de
Jesus transforme o atual entorpecimento enganoso dos sentidos na verdadeira, vívida e eterna
alegria.