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Lutero e o Sacerdócio universal da Igreja

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Breve introdução:

No presente artigo, pretendemos apresentar algumas linhas fundamentais da teologia protestante, quanto à compreensão do que se chama de sacerdócio universal dos fiéis. Vamos resumir brevemente o pensamento de Martinho Lutero, o mais conhecido protagonista da Reforma protestante no contexto alemão. Descreveremos algumas posições do autor, referentes ao entendimento sobre a eclesiologia, reflexão teológica acerca da Igreja, e assim também faremos uma síntese de algumas questões teológicas e históricas que emergem como consequências dessa concepção.

A produção de Lutero

Martin Lutero (1483-1546) buscou uma reinterpretação teológica sobre a natureza da Igreja, e de sua relação com Cristo e com o mundo. Diante do catolicismo medieval, Lutero se posicionou em favor de que todos os fiéis, todos os cristãos, devessem se considerar sacerdotes. Segundo Olson (2001), esse é um dos princípios mais básicos do pensamento de Lutero e aspecto bíblico que permeia toda a Reforma protestante do século XVI.

            Almeida (2006) defende que a Reforma se estabeleceu como um impulso primeiramente espiritual e prático, e apenas em referência a esse impulso ela se apresenta como fundamentação teológica sistemática para os posicionamentos propostos. Ainda de acordo com Almeida (2006), percebe-se que a eclesiologia dos reformadores do século XVI só pode ser compreendida à luz dos desdobramentos históricos da época e da herança teológica dos precursores como Ockham, Wycliff e Hus. Portanto, as ideias da Reforma não caíram do céu, mas são frutos dos desdobramentos das críticas à Igreja Católica nos séculos que precederam aqueles anos, como pontuou Lindberg (2001).

            Lutero desenvolveu o tema do sacerdócio universal na obra Manifesto à nobreza cristã da nação alemã, mas, conforme Lienhard (1998), essa reflexão também se desdobra em outras obras como Do cativeiro babilônico da Igreja e Da liberdade do cristão. No polêmico Manifesto é que aparecem os grandes princípios da Reforma: o primado da fé, o sacerdócio universal e a autoridade da Escritura, além de uma consequente fusão posterior entre Estado eclesiástico e Estado laico (LIENHARD, 1998).

Em Lutero, o conceito de sacerdócio universal dos crentes traria mudanças significativas para a imagem da Igreja como então era concebida em sua época. Com base em textos bíblicos como 1Pd 2,9-10, Ap 1,6 e outros, Lutero desejou reconfigurar, sobretudo, as relações internas na Igreja, principalmente a relação entre leigos e ministros ordenados.

Tendo parte no mesmo batismo, no mesmo evangelho e na mesma fé, os cristãos formam em conjunto o estado eclesiástico e o povo cristão. No interior desse povo, porém, serão exercidos funções ou ministérios diferentes, entre eles aquela de sacerdote ou pastor (LIENHARD, 1998, p. 80).

Isso significa que a fé e a regeneração batismal constituem para Lutero a comunhão dos santos (Communio Sanctorum) como povo sacerdotal. Assim como descrito abaixo:

O sacerdócio é próprio de todo o povo, cujos membros, por meio do batismo, foram incorporados ao corpo de Cristo. Lutero, neste sentido, insiste muito mais na unidade do povo sacerdotal do que na multiplicidade de funções ministeriais (ALMEIDA, 2006, p. 174-175).

Consequentemente, o papel de todo cristão, que é sacerdote, é de se articular simbolicamente entre Deus e a humanidade por meio dos sacrifícios espirituais e da proclamação dos feitos de Deus, com o anúncio do Evangelho da graça.

Olson (2001) demonstrou que o sacerdócio universal para Lutero implica duas questões importantes: todos os crentes em Jesus Cristo podem recorrer diretamente a Deus, em favor dos homens e por si próprios; os ministros ordenados não possuem nenhuma condição espiritual especial acima do restante do povo de Deus para exercer domínio sobre ele.

Em virtude disso, Lutero suprimiu qualquer diferença essencial entre leigo e ministro ordenado, por acreditar que a dignidade e a hierarquia sacerdotais na Igreja romana não possuíam clara base bíblica, e não passavam de invenção humana.

Se para o reformador existe uma igualdade absoluta entre todos os membros do povo de Deus, o ministério eclesiástico não é mais entendido com caráter sacerdotal em sentido especial, hierárquico ou permanente, pois se trata de puro serviço da Palavra e dos sacramentos, em vista da edificação da comunidade, segundo Almeida (2006).

            Sem propor uma definição para a Igreja, Lutero teve a intenção de deixar claro que o Evangelho é maior do que qualquer tradição que gera a hierarquia, como bem explicitou Ribeiro (2007, p. 133): “o risco absoluto é quando os poderes diretivos e administrativos sobrepõem-se ao Evangelho”. Logo, ainda segundo Ribeiro (2007, p. 133), “quando isso acontece, a Igreja manifesta-se, principalmente, como estrutura hierárquica e não como povo de Deus”. De fato, Lutero não conseguia integrar uma rígida ideia de hierarquia com sua visão de povo sacerdotal. Disso decorre que todo ministério ordenado deve ser submetido às opções da comunidade sacerdotal e não o inverso. Na ausência do ministro, qualquer fiel pode pregar a Palavra e celebrar os sacramentos (OLSON, 2001; ALMEIDA, 2006, TILLICH, 2007).

Outra situação interna das relações eclesiais é que o sacerdócio universal fez Lutero realçar o papel de todos os fiéis no julgamento do que é certo e errado na Igreja.

Todos nós, como sacerdotes (…). Temos uma só fé, um Evangelho, o mesmo sacramento. Como não haveríamos de ter também o poder de perceber e de julgar o que seria correto e incorreto na fé? (…) Se (…) Deus falou contra um profeta através de uma jumenta, por que não poderia ele falar ainda contra o papa através de uma pessoa piedosa? Por isso cabe a todo cristão assumir a fé, de forma a compreendê-la e defendê-la, bem como a condenar todos os erros (LUTERO apud LIENHARD, 1998, p. 80).

            Assim, aquela tradicional exclusividade do clero medieval na interpretação da Bíblia é relativizada por Lutero. Sua eclesiologia ou doutrina cristã acerca da Igreja configura-se intimamente ligada ao princípio de Sola Scriptura, tornando a Reforma protestante um processo praticamente irreversível na Europa.

Com o passar do tempo, o acesso dos fiéis às Escrituras acabou por garantir certa irreversibilidade ao movimento reformador. As Escrituras passaram a estar ao alcance do povo, que, movido pela esperança, obteve o acesso e, consequentemente, o direito de interpretar (RIBEIRO, 2007, p. 130).

Portanto, as diferenças no interior da Igreja são vistas em termos de função e não em essência. Nesse sentido, Lutero também tem por base sua compreensão fundamental da justificação pela fé em Cristo na teologia paulina, que radicaliza e imediatiza a relação do cristão com Deus e com sua Palavra, segundo a reflexão de Lindberg (2001).

            A tese do sacerdócio universal dos fiéis em Lutero não deixou marcas apenas nas relações internas da Igreja, porém deixou também implicações externas, da confusão entre Igreja e os poderes do Estado.

Algumas consequências da proposta de Lutero

Não obstante Lutero ter valorizado os leigos membros das Igrejas, recuperando sua dignidade como em outros grandes momentos da História do cristianismo, surgem também críticas à sua proposta eclesiológica, como nas palavras de Almeida (2006, p. 180): “Paradoxalmente, Lutero dessacraliza os ministros eclesiásticos (sacerdotes) e ‘sacerdotaliza’ os leigos (não sacerdotes)”. Em virtude disso:

Não somente somos os mais livres entre os reis, como também somos eternamente sacerdotes, que é muito melhor do que sermos reis, pois como sacerdotes somos também dignos de aparecer perante Deus a fim de orarmos pelo próximo e ensinarmos questões divinas uns aos outros.[…] Cristo tornou possível, sob a condição de crermos nele, que fôssemos não somente seus irmãos, co-herdeiros e reis, mas também sacerdotes como ele. Podemos, portanto, aparecer confiantemente na presença de Deus com espírito de fé […] e clamar “Aba, pai”, e orar uns pelos outros e fazer todas as coisas que sabemos que são feitas e prenunciadas nos serviços exteriores e visíveis dos sacerdotes (LUTERO, 2008, p. 64).

A relação entre leigo e ministro ordenado

Na avaliação recente de alguns teólogos luteranos, o conceito de sacerdócio universal segundo Lutero não privilegia os leigos em detrimento dos ministros. Lutero não exclui a necessidade e a importância do ministro.

O conceito não afirma, antes de mais nada, que todo crente é um sacerdote, mas, antes, que qualquer sacerdócio que exista pertence a todos os crentes e funciona em favor deles. Conforme 1Pd 2,9, todo o povo é e possui o sacerdócio. As duas implicações significativas disto são: primeiro, que sacerdotes ordenados são necessários para executar o sacerdócio de todos, e, segundo, que esses sacerdotes não possuem ou controlam o sacerdócio, mas o desempenham em favor de todo o povo de Deus (HEFNER, 2007, p. 235).

            Não se deve entender a visão de Lutero como anárquica ou subjetivista, em que cada fiel poderia reivindicar para si o poder na Igreja de forma arbitrária. O papel do ministro entra em cena como regulador e mediador das questões que envolvem o povo cristão. “O ministério ordenado não está em oposição ao sacerdócio de todos os crentes; antes, concebido de maneira adequada, implementa este sacerdócio” (HEFNER, 2007, p. 236).

Deve-se ainda ressaltar que não há uma teologia protestante que viabilize o ministério ordenado tanto em perspectiva sacramental (catolicismo), quanto em seu aspecto simplesmente funcional. De fato, a teologia católica defende que a Ordem é um verdadeiro sacramento, pois confere uma graça divina especial e eficaz ao ministro, para celebrar a missa e os sacramentos, como presidente da assembleia litúrgica, em nome de Cristo e em nome do povo. Na teologia protestante decorrente de Lutero, por outro lado, a ordenação é esvaziada desse caráter sacramental, o que dificulta o diálogo entre católicos e protestantes até o tempo presente.

Consequência política

Por outra parte, provavelmente, a mais desastrosa consequência da posição eclesiológica de Lutero quanto ao sacerdócio universal foi permitir aos príncipes submeter a religião ao Estado, como bem refletiu Almeida (2006). “Nos países luteranos o governo da Igreja logo se identificou com o governo do Estado” (TILLICH, 2007, p. 251). Se Lutero havia acabado com a hierarquia no sentido católico, quem poderia governar a Igreja com poder? Afinal, os ministros não tinham mais esse poder. Lutero propôs que os príncipes fossem os bispos supremos em seus domínios. Esses príncipes não deveriam arbitrar sobre os afazeres religiosos internos da Igreja, mas cuidar do âmbito administrativo e burocrático. A princípio, essa era uma situação emergencial, que mais tarde se tornou cultural em diversos movimentos do protestantismo europeu. Diante da chamada Igreja estatal Paul Tillich (2007) interpretou essa questão propondo a seguinte hipótese:

A Igreja se transformou mais ou menos (…) num departamento da administração estatal e os príncipes em árbitros da Igreja. Não fora essa a intenção, mas o que aconteceu demonstra que a Igreja sempre necessita de certo apoio político. O catolicismo tinha o papa e a hierarquia; o protestantismo teve que buscar o apoio dos membros mais destacados da comunidade, os príncipes ou, nos países mais democráticos, certos grupos sociais (TILLICH, 2007, p. 251).

            Mesmo com essa explicação, é necessário reconhecer a dificuldade de compreensão teológica e a imprecisão de uma teoria do Estado em Lutero, devido à sua crença de que todo governo era dado providencialmente por Deus.

Tillich (2007, p. 251) ainda explica Lutero, percebe que “o poder do Estado, que nos permite estar aqui e possibilita as obras de caridade, procede do amor de Deus”. No entanto, para Lutero esse amor é duplo, apresenta um Deus com dois tipos de obras mediante o Estado, pois de um lado ele realiza misericórdia e compaixão, e de outro, punição e castigo aos desobedientes. Esses dois lados, aparentemente inconciliáveis, são articulados pela compreensão do reformador. Assim, paradoxalmente, Lutero, que defendia a igualdade essencial de todos os fiéis, leigos e ministros ordenados, na Igreja, ao mesmo tempo assimilava como obra da Providência divina um Estado relativamente tirano (TILLICH, 2007).

No tocante ao nazismo, por vezes associado à doutrina de Lutero, Paul Tillich defende o reformador em uma palestra de 1953:

Quando hoje dizemos que Lutero é responsável pelos nazistas, estamos proferindo um mundo de bobagens. A ideologia dos nazistas é quase o oposto da de Lutero. Lutero não tinha nenhuma ideologia nacionalista, nem tribal, nem racial. Elogiava os turcos por causa de seu bom governo. Deste ponto de vista não existe nazismo em Lutero. O que é apenas consequência de seus princípios básicos. A única verdade na teoria que liga Lutero ao nazismo é ele ter acabado completamente com a vontade revolucionária do povo alemão. O povo alemão não tem vontade revolucionária; é só isso que podemos dizer (TILLICH, 2007, p. 253).

Diante dessa exposição sobre Lutero, sobre sua eclesiologia e consequências, passaremos a algumas considerações finais.

Conclusão

Resumimos alguns pensamentos de Lutero com relação à ideia de sacerdócio universal dos crentes, conceito tão caro às Igrejas oriundas da Reforma protestante. É bom lembrar que esse conceito eclesiológico não se esgota no pensamento luterano.

As críticas de Lutero ao clericalismo romano repercutiram negativamente na História da Igreja Católica Romana, resultando em conflitos teológicos e até em guerras. O monge agostiniano alemão deixou um marco permanente, tanto nas Igrejas quanto nas políticas do contexto europeu moderno. Lutero não sistematizou em uma única obra todo o seu pensamento sobre a Igreja. Sua reflexão deve ser percebida como um processo que se configurou em fases diversas de sua teologia.

Tanto Lutero quanto João Calvino (1509-1564), provavelmente os dois mais influentes teólogos protestantes do século XVI, defenderam que o ministro ordenado tem uma função sublime, de servir à comunidade dos crentes em Jesus. Pode-se dizer que, segundo os primeiros teólogos do protestantismo, não se esvazia totalmente o ministro de uma função administrativa e litúrgica, mas esse cargo é despido do caráter sacramental católico (Ordem). Um ponto de divergência entre Lutero e Calvino refere-se à consequência social da relação entre Igreja e Estado, entre Igreja e sociedade. Enquanto Lutero supervalorizou o poder dos príncipes, Calvino foi mais cauteloso nesse aspecto, mas não negou aos fiéis um grande papel político.

No lado católico, o Concílio Vaticano II (1962-1965), por meio da Constituição Dogmática Lumen Gentium, recuperou na eclesiologia católica essa dimensão fundamental da existência cristã, de ser povo de Deus, esclarecendo a dignidade e a potencialidade dos cristãos leigos no interior desse povo, mediante a expressão “sacerdócio comum”, apesar do típico clericalismo romano.

Com base no que foi tratado neste brevíssimo texto, vale lembrar que a reflexão sobre os momentos tensos da História, em que se tentou articular a coragem e o discernimento da missão cristã, em vista do diálogo entre as Igrejas e tradições cristãs, ajuda a resgatar e assumir esse sacerdócio comum ou universal. Que o sacerdócio e a realeza do povo de Deus mostrem-se também como diálogo entre a Igreja e todas as esferas da sociedade civil, para anunciar o Evangelho de Cristo a todas as pessoas.  

Referências bibliográficas:

ALMEIDA, A.J. Leigos em quê? Abordagem histórica. São Paulo: Paulinas, 2006.

HEFNER, P.J. A Igreja. In: BRAATEN, C.; JENSON, R.W. (Eds.). Dogmática cristã. Volume Dois. 2ª Ed. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

LIENHARD, M. Martim Lutero: Tempo, vida e mensagem. São Leopoldo: Sinodal, 1998.

LINDBERG, C. As Reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

LUTERO, M. The freedom of a Christian. Augsburg: Augsburg Books, 2008, p. 64 (tradução nossa).

OLSON, R. História da teologia cristã. Dois mil anos de tradições e reformas. São Paulo: Vida, 2001.

RIBEIRO, A. C. O Espírito na eclesiologia protestante. In: TEPEDINO, A.M. (Org.). Amor e discernimento. Experiência e razão no horizonte pneumatológico das Igrejas. São Paulo: Paulinas, 2007.

TILLICH, P. História do pensamento cristão. 4ª Ed. São Paulo: ASTE, 2007.

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