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HERMENÊUTICA APOCALÍPTICA

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Série de estudos sobre o Apocalipse para auxiliar professores e estudantes.

Parte II –

. Reinterpretação do comentário sobre o Apocalipse

Comentadores críticos históricos identificaram o Apocalipse como originário nas comunidades da Ásia Menor sob perseguição pelo Império Romano. Por outro lado, estudam os gêneros literários situados no contexto do imaginário proféticoapocalíptico bíblico. Essas abordagens revelam a intenção do autor de inspirar
e fortalecer as comunidades oprimidas e perseguidas. Essa dinâmica não se restringe apenas às comunidades originais, podendo ser aplicada às comunidades eclesiais contemporâneas que enfrentam opressão e perseguição.

. Abordagens atuais ao Apocalipse

No âmbito acadêmico bíblico, diversas abordagens buscam atualizar a mensagem do Apocalipse para os tempos atuais. Uma delas é uma abordagem litúrgica, embora seja crucial manter seu caráter profético para evitar cair em ritualismos vazios. Entre as interpretações proféticas contemporâneas, destacam-se aquelas idênticas com a “teologia da libertação” e a abordagem “mítica” de Pablo Richard.

O Apocalipse como livro de Resistência

Analogamente ao livro de Dietrich Bonhoeffer ( Teólogo luterano alemão que se destacou como resistente ao regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Sua vida e obra refletem um contexto marcado pelo surgimento e ascensão do nazismo na Alemanha), que encorajou a resistência contra o totalitarismo nazista, o Apocalipse pode ser visto como um chamado à resistência contra poderes opressivos, como Roma na época do Novo Testamento e o nazismo na era de Bonhoeffer. A mensagem central é a submissão ao poder do Amor personificado em Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado. O Apocalipse não busca instilar medo como um filme de terror, nem prever eventos futuros de forma catastrófica; ao contrário, visa fortalecer as comunidades cristãs diante das adversidades e perseguições religiosas.

Hoje o Apocalipse recuperou sua relevância, especialmente entre as
comunidades cristãs diante das adversidades e perseguições religiosas.
Hoje o Apocalipse recuperou sua relevância, especialmente entre as
comunidades cristãs perseguidas por sua fé e por sua fidelidade ao
Evangelho. Essas comunidades se sentem profundamente em sintonia com
João e suas igrejas perseguidas por um império injusto, o de Roma, assim
como também são perseguidos por poderes políticos que se sentem
ameaçados pela forma radical com que tais comunidades vivem o
seguimento de Jesus. Neste sentido, está claro hoje que o Apocalipse é um
livro de resistência cristã, escrito por um homem profundamente crente, um
profeta (cf. 1,3; 22,9-10) que quer ajudar suas comunidades a superar a
crise religiosa que a perseguição que sofrem está causando entre os
cristãos. Com seu livro, o autor não só quer ajudá-los a interpretar a história
que estão vivendo, mas também contribuir para transformar essa história,
para que ela responda ao plano do Deus da Aliança e Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo […]. Enquanto grupos fundamentalistas e carismáticos,
especialmente em certas seitas, encorajam uma leitura literal e alienante do
texto, outros, como as comunidades de base latino-americanas,
perseguidas pelo império da época, descobrem neste texto uma crítica aos
poderes políticos injustos e uma profunda mensagem de esperança.”

J. O.Tuñí – X. Alegre, Escritos joánicos y cartas católicas, Estella: Verbo Divino
1995, 213-214).

A ESPERANÇA ATRAVÉS DO MITO

São interessantes as palavras de Pablo Richard:

O Apocalipse quer reconstruir a esperança, a consciência e a identidade da comunidade cristã, a fim de poder resistir e sonhar com um mundo melhor. Os profetas agiram dentro do sistema: eles denunciaram o rei, os sacerdotes, os líderes de Israel. Os apocalípticos estão fora do sistema, não tanto em uma situação de opressão, porém de caos, onde o mais urgente não é mais a denúncia, mas a construção da esperança […] Hoje também estamos passando da profecia para o apocalíptico, do protesto para a proposta, da pura denúncia para a construção da resistência e da esperança. O Apocalipse é um livro muito atual precisamente porque procura construir esperança e consciência em um contexto de exclusão e caos.”

(“Apocalipse. Reconstrucción de la espe- ranza”, Reseña Bíblica 27 (1994) 14).

As visões escatológicas do Apocalipse retratam a luta entre o bem e o mal, culminando na vitória do bem, conforme a interpretação bíblica da história. Essa narrativa é evidente em diversas passagens:

A batalha escatológica de Cristo contra a besta (Apocalipse 19:11-21)

O reinado de mil anos (Apocalipse 20:1-6), simbolizando a vitória do Reino de Deus e não uma dominação política dos cristãos. O Milênio, também conhecido como o Reino Milenar, é um período de mil anos durante o qual Cristo reinará plenamente sobre o mundo, de acordo com o que está explicitado no Apocalipse (20.1-5). Esse reino é literal e tem como principal objetivo a exaltação de Jesus não apenas como o Messias de Israel, mas como o Desejado de todas as nações (Ageu 2:7).

Vamos explorar o que a Bíblia diz sobre o Milênio e como ele se relaciona com os milagres e transformações:

O Tempo de Profunda e Ampla Transformação:

  • O Milênio será um período de mudanças radicais na Terra.
  • A Natureza será transformada pelo milagre da fertilidade.
  • A Terra apresentará condições semelhantes às encontradas no Éden (Isaías
    11:6-9).
  • Lugares secos se tornarão jardins verdejantes, a água será abundante e a
    Natureza florescerá.

Milagres na Natureza:

  • Durante o Milênio, haverá uma operação ampla e plena do Espírito Santo.
  • O Senhor Jesus Cristo comandará, junto com os salvos, um tempo de mil
    anos de paz, justiça, prosperidade, transformações e milagres jamais vistos.
  • Os milagres incluirão a fertilidade da terra, abundância de recursos naturais
    e harmonia entre os animais.

Cumprimento das Promessas:

  • O Milênio é o cumprimento de promessas feitas desde o tempo antigo
    (Gênesis 12:1-3; 17:8; 2 Samuel 7:12-16; Isaías 42:6).
  • Será um tempo em que a justiça e a plenitude da presença de Deus
    prevalecerão.

O Milênio é um período de esperança, transformação e milagres, quando a Terra será restaurada à sua condição original e a justiça reinará sob o governo de Jesus Cristo. Essas passagens do Apocalipse ilustram a vitória definitiva do bem sobre o mal, o julgamento divino e a promessa de uma nova ordem celestial e terrestre.

O Apocalipse fala do futuro para dar sentido e orientação à história presente e para poder descobrir e desfrutar deste futuro agora, ainda que apenas simbolicamente, nas pequenas vitórias que a humanidade e a Igreja conquistam. Esta sempre foi a função da utopia: guiar nossa vida, nosso pensamento e nossa história em uma determinada direção. Se caminharmos nesta direção, então a história faz sentido.

(“Apocalipse. Reconstrucción dela esperanza”, Reseña Bíblica 27 (1994) 16).

A INSPIRAÇÃO DO INCONSCIENTE OU A MÍSTICA DO APOCALIPSE

Permanece ainda uma pergunta que precisa de resposta: por que esta forma de escrever exageradamente simbólica, quase delirante?

A arte e o inconsciente podem nos dar pistas para entender. Poderíamos nos perguntar, por exemplo, por que Picasso escolheu o expressionismo para pintar o drama do bombardeio de Guernica? Ou ainda, por que Dalí usou o surrealismo para nos introduzir a seu mundo de sonhos e fantasias? Simplesmente porque
ambos os autores, através de sua inspiração artística, descobriram que estes estilos eram os mais adequados para expressar seu estado de espírito e as intuições ou “visões” que queriam captar em suas obras.
Da mesma forma, o autor do Apocalipse, a fim de expressar a situação dramática que os cristãos estão vivendo e poder dar uma razão para sua esperança, se sente obrigado a usar o apocalíptico, pois retém ser o gênero mais adequado para expressar sua fé.


Além disso, a linguagem simbólica permite que a mensagem seja transmitida através de sinais numéricos e imagens estranhas, apenas decifráveis para aqueles que possuem as chaves de interpretação que se encontram no imaginário bíblico.

Acreditamos, entretanto, que a principal razão para utilizar o gênero apocalíptico reside principalmente na sua capacidade expressiva, mais do que no fato de ser capaz de apresentar uma história “codificada”, no estilo das mensagens de espionagem atuais.

O apocalíptico é um gênero literário que procura impressionar o leitor ouvinte e transmitir uma mensagem, inclusive apelando para o subconsciente, a fim de provocar uma mudança de atitudes e sentimento. A simbologia e o mito não apelam tanto para a inteligência, para a razão, mas muito mais para o sentimento, para a imaginação, para a intuição.

Na teologia liberal e intelectualista (quase gnóstica), esta forma apocalíptica de falarfoi
desprezada. Chegou-se até a afirmar que o gênero apocalíptico era a degeneração da
literatura profética, que o mítico era o oposto do histórico e quase sinônimo de falso. Hoje
valorizamos esta linguagem usada pelo Apocalipse. Uma pessoa pode se expressar tão
legitimamente com conceitos quanto com símbolos. Paulo, em suas cartas, usa conceitos
como “lei”, “pecado”, “graça”, “fé”. O Apocalipse se exprime com símbolos: “olhos como
chamas de fogo”, “rosto como o sol” e centenas de outros símbolos. Os símbolos são
polissêmicos (eles têm muitos significados); neles reside sua riqueza e seu poder. Os
símbolos estão sempre disponíveis e vivos. As visões são imagens articuladas de muitos
símbolos. As visões do Apocalipse não devem ser lidas, mas contempladas. Cada visão do
Apocalipse representa uma identidade, uma consciência, uma espiritualidade […]
O mito é uma história articulada de símbolos […] Foi em diálogo com os povos indígenas
que aprendi a importância dos mitos e de como lê-los. Símbolos, visões e mitos têm uma
função de memória histórica; a narração dos mitos lembra ao povo o significado de sua
história e de sua identidade. Há também uma relação entre mito e práxis: o mito articula
uma certa maneira de agir de um povo, orienta sua ação e o arrastacom um certo
significado histórico. Existe uma relação entre mito, prática e política, porque o mito define
o poder que um povo tem e sua posição como um povo em relação ao poder estabelecido.
Reconstruir os mitos de um povo é reconstruir sua identidade histórica e sua práxis
libertadora. Os mitos têm uma função semelhante no Apocalipse.

(P. Richard, «Apocalipse»,18)

A psicologia analítica explora os símbolos e mitos como manifestações do inconsciente, destacando símbolos universais como água, fogo, animais poderosos (como cavalo e touro), serpentes e dragões, que evocam emoções comuns e liberam energias singulares. A inspiração artística, e até mesmo a inspiração bíblica, muitas vezes surge como uma manifestação de imagens do inconsciente. O artista atua como um canal para o coletivo, expressando em seus trabalhos os sentimentos da comunidade ao seu redor.
Há uma conexão entre as imagens dos sonhos, da arte, dos mitos e lendas, e também com as imagens bíblicas, especialmente os símbolos e narrativas mais míticas do texto sagrado. O Apocalipse, com sua expressão surrealista, convida à interpretação analítica para compreender se as leis que governam a manifestação do inconsciente podem auxiliar na interpretação dessestextos.


Juan Carlos García Domene descreveu a obra “Guernica” de Picasso como “O Apocalipse segundo Picasso”. A fusão do neoclassicismo, expressionismo e surrealismo nessa pintura confere uma expressividade única à obra, superando os padrões clássicos ou realistas e realçando a profundidade simbólica e emocional presente na arte.

Guernica é muito mais do que a reportagem de um evento; o pretexto do momento é elevado a um símbolo e conduzido a uma visão apocalíptica. A diferença radical entre este quadro e a pintura burguesa é clara. Nasceu um novo gênero de mesa votiva horripilante e ultradimensional, no qual é representada a avassaladora miséria do homem castigado pelo uso da tecnologia.

O touro, o cavalo, a mulher que chora, a mãe com seu filho morto, a lâmpada elétrica, o soldado morto, o pombo ferido, etc. são símbolos que apresentam diferentes níveis de interpretação:

  • Um nível mais elementar, que se baseia na força intrínseca e natural das imagens: o touro e o cavalo, força; a mulher que chora e a mulher com a criança morta, desolação e desastre; a lâmpada, luz; o soldado morto, derrota; a flor, gratuidade, beleza, etc.
  • Um segundo nível de interpretação, obtido pela associação de simbolismo cultural: o touro, Espanha; o cavalo, fascismo nacionalista; a mãe com a criança morta, Madri; a pomba ferida, paz quebrada; o soldado, o miliciano; a flor, a esperança; o olho-lâmpada elétrica e a lâmpada, Deus ou a luz da transcendência, etc.

Da mesma forma, no Apocalipse encontramos uma dupla interpretação possível dos símbolos:

  • Uma mais natural: o cordeiro, a inocência; a mulher, o aspecto feminino (que pode ser positivo, como doador de vida, ou negativo, como atração que leva ao infortúnio); o dragão, os aspectos mais instintivos e arcaicos do ser humano que não são controlados, como a sexualidade, a violência,
    etc.; o cavalo, a energia instintiva da pessoa; a água, a vida; a árvore, a pessoa, etc.

Outra interpretação mais cultural, que na Bíblia se caracteriza pelo universo cultural do Antigo Testamento como seu referente mais próximo. O cordeiro é o cordeiro de Deus apresentado por João Batista; os quatro seres vivos, os querubins da visão de Ezequiel (Ez 10; Ap 4); o rio de água viva evoca o rio do Gênesis; e a árvore da vida do Ap 22, a árvore da vida do Gn 1.

Esta interpretação analítica nos permite ver, além do significado do universo cultural das imagens, também a interpretação de símbolos e mitos em seu aspecto mais instintivo e natural, que provoca no leitor ou ouvinte,
inconscientemente, a perceção de sentimentos e a mobilização de energias interiores, capazes de provocar sentimentos como medo, esperança, alegria, força interior, energia para a luta pacífica e para o martírio. É nesse sentido que a leitura, ou melhor, a contemplação do texto bíblico, pode levar à oração e ao
compromisso.

Bibliografia:

FORD, J. M., Revelation, New York: The Anchor Bible 1982.
GARCÍA, J. C., «El Apocalipse según Picasso», Reseña Bíblica 27 (1993).PRÉVOST,
J. P., Para leer el Apocalipse, Estella: Verbo Divino 1994.
RICHARD, P., «Apocalipse. Reconstrucción de la Esperanza», Reseña Bíblica 27(1993).
STOCK, K., La última palabra es de Dios, Madrid: San Pablo 2005.
TUÑÍ, J. O.– ALEGRE, X., Escritos joánicos y cartas católicas. Estella: Verbo Divino1995.
VANNI, U., Apocalisse. Ermeneutica, esegesi, teologia, Bologna 1991.Vanni, U.,
Apocalipse, Estella: Verbo Divino 1982.
VÁZQUEZ, J., «Presentación y estructura del libro del Apocalipse», Reseña Bíblica 27(1993).

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